Ora aqui chegamos ao antigo Largo dos Torneiros, — recorda-nos Norberto de Araújo — que se sucedeu na designação oral de uma antiga Rua dos Torneiros ou da Tornoaria e que, antes do Terramoto, é claro, ia dar ao Largo de S. Nicolau. Vês êste edifício, bem curioso, da esquina, propriedade de rendimento, com lojas de comércio, de um exterior manifesto de antiga Igreja ou Casa Religiosa?
Pois foi aqui, com efeito, um Convento: o do Corpus Christi, ou dos frades torneiros, nome que a êles derivou do sítio onde se arruavam os homens dos tornos.
O Convento do Corpus Christi pertencia aos religiosos carmelitas descalços de Santo Alberto, e foi construído em 1648 a expensas da Rainha D. Luiza de Gusmão, em sinal de agradecimento per o Rei, seu marido, haver escapado de um atentado que — diz-se — neste sitio se projectou contra ele. O Terramoto destruiu-o; foi reedificado, mas em 1834 entrou nos próprios nacionais e foi vendido.
O episódio foi rapidamente aproveitado como instrumento de propaganda
contra Castela, servindo igualmente para reforçar a tese da protecção
divina do reino de Portugal, associada à devoção pelo Santíssimo
Sacramento. A capela integrava-se assim num conjunto de obras régias de
forte carga ideológica, apresentando-se como um dos primeiros monumentos
de celebração do sucesso da Restauração. O convento anexo foi edificado
posteriormente, e entregue aos Carmelitas Descalços em 1661, embora as
obras se tenham prolongado pelo menos até à primeira década do século
seguinte.
Da campanha de obras inicial, concebida por Teodósio de
Frias, conhecem-se algumas descrições. Segundo fontes coevas, o templo,
de planta quadrada, erguia-se sobre um soco baixo, tendo torre sineira e
fachada vazada por pórtico de arcada dupla dando acesso ao portal de
feição clássica, enquadrado por duas janelas e encimado por frontão
ornado com as armas reais e por um nicho. No interior destacavam-se os
alçados marcados por grandes arcos redondos, rematados por cimalha e
articulados com as trompas de apoio ao zimbório, as seis tribunas, uma
de maiores dimensões, e ainda os mármores de revestimento.
Com o Terramoto de 1755 e o incêndio subsequente, o convento terá sofrido destruição quase total, ficando a igreja muito arruinada, embora possivelmente de pé. A sua reedificação no mesmo local não terá sido decidida de imediato, já que para aí esteve inicialmente prevista a vizinha Igreja de São Nicolau. Quando enfim tomou corpo, a reconstrução, a cargo do arquitecto Remígio Francisco de Abreu, integrou os edifícios na malha ordenada da Baixa Pombalina, e o novo convento, ocupando quase todo o quarteirão, foi parcialmente dividido em lojas e apartamentos para aluguer, destinadas a proporcionar rendimento aos frades.
Com o Terramoto de 1755 e o incêndio subsequente, o convento terá sofrido destruição quase total, ficando a igreja muito arruinada, embora possivelmente de pé. A sua reedificação no mesmo local não terá sido decidida de imediato, já que para aí esteve inicialmente prevista a vizinha Igreja de São Nicolau. Quando enfim tomou corpo, a reconstrução, a cargo do arquitecto Remígio Francisco de Abreu, integrou os edifícios na malha ordenada da Baixa Pombalina, e o novo convento, ocupando quase todo o quarteirão, foi parcialmente dividido em lojas e apartamentos para aluguer, destinadas a proporcionar rendimento aos frades.
A igreja oitocentista reproduzirá pelo menos os traços fundamentais do templo original, sendo mesmo possível que tenha incorporado parte da estrutura sobrevivente, suposição permitida pela análise da planta e da sua inserção urbanística, dos alçados internos, com cobertura em cúpula assente igualmente em quatro arcos com cimalha corrida, e de alguns revestimentos marmóreos de embutido largo, muito empregue na arquitectura portuguesa da primeira metade do século XVII. A planta centralizada (quadrado de cantos cortados), que constitui caso único na Baixa Pombalina, conserva o simbolismo de moimento, e até de martyrium, do edifício anterior, evocando o milagre da vitória régia sobre a morte, com uma conotação funerária que fora igualmente aproveitada aquando do sepultamento provisório de D. Luísa de Gusmão, em 1666. O espaço interior esteve dividido em sobrados, sendo hoje possível voltar a admirar a sua grande altura, bem como o esplendor dos mármores brancos, negros e rosa, iluminados pelas oito janelas da cobertura.
A actual frontaria é o resultado de uma série de alterações posteriores à extinção das ordens religiosas [1834] e à consequente venda e remodelação do templo e do convento para usos comerciais, nomeadamente o desaparecimento do portal de frontão curvo interrompido da igreja pombalina, de que resta um desenho do século XIX, substituído por três portas de verga recta no piso térreo e igual número de janelas de sacada no segundo andar. As janelas do terceiro andar mantiveram-se, embora com alterações, sendo ainda hoje encimadas pelo frontão contracurvado, único elemento da fachada a recordar a antiga função religiosa, apenas coadjuvado pelo zimbório octogonal que sobressai da regularidade dos telhados pombalinos.
Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p.39, 1939.
SOROMENHO, Miguel, SANTOS, Maria Helena Ribeiro dos, O Convento de Corpus Christi: um caso de estudo, Monumentos, n.º 21, pp. 116-131, DGPC, 2004.