Estamos no cérebro do Bairro Alto — diz Norberto de Araújo. Temos andado à roda do Bairro, sem penetrarmos no seu íntimo: em verdade só tenho querido evitar atropelos, em matéria de si tão entroncada de assuntos, tão xadrezada de motivos ornamentais da sua história.
Neste Largo de S. Roque-que desde 8 de Outubro de 1913 se passou a chamar «de Trindade Coelho» — é lugar de discorrermos — sem perdermos dez minutos — acerca [...] do edifício moderno, anexo da Misericórdia, com face para o Largo, e que se continua nos três primeiros lanços da Calçada do Duque.
Foi D. Francisco da Gama, 2." Conde da Vidigueira, quem aqui fez erguer o desaparecido Palácio Niza, em 1543, sobre chãos que a Câmara Municipal lhe aforou. O palácio era mais avançado do que hoje é.A Casa solarenga foi dos descendentes de Vasco da Gama até 1631, ano em que, assoberbados de dividas, a venderam a Gaspar Freire, fidalgo da Casa Real. Mas logo quatro anos depois D. Vasco Luiz da Gama, 5.º Conde da Vidigueira, 1.º Marquês de Niza, voltou a adquirir o Palácio, que recebeu obras e beneficiações em 1672, para o que aquele fidalgo, que foi diplomata e Secretário de Estado de D. Pedro II, enquanto Regente — e não era opulento — precisou de vender umas casas que tinha na Rua Nova (dos Mercadores).Em 1689 os Nizas não habitavam o seu Palácio de S. Roque, e nele residia o Embaixador de Franga Robert. Le Roux. Quando do Terramoto, o Palácio era a habitação faustosa do 1.º Patriarca de Lisboa. D. Tomaz de Almeida (que nele morreu); a permanência do famoso Prelado de Lisboa foi grande no Solar Niza, de S. Roque, e ao pátio chamava o povo «o Pátio do Patriarca».O Terramoto .arruinou o edifício, e os fidalgos Gamas não estiveram dispostos — como aliás quási todos os propriet6rios de palácios em Lisboa — à reedificação, muito dispendiosa, sobretudo pela falta de braços.Em 1814, num antigo palheiro da Casa, começou a funcionar um curioso «Teatro Pitoresco», no qual se representou, por amadores, o «Catão» de Almeida Garrett, e se deu o primeiro baile de máscaras público da capital.
O edifício, cada vez mais arruinado, ameaçava desmoronar-se; entrou a ser pardieiro, como tantos. Em 1835 a Câmara Municipal intimou a Marquesa, D. Eugénia da Gama, à demolição urgente. Mas a nobre dama vendeu, por comodidade, tudo quanto possuía neste sitio a Francisco Caldas Aulette, dicionarista, contador da Relação, pessoa culta e de bom gosto; a transferência de propriedade fez-se a 17 de Maio de 1837. Recompôs-se então o Palácio na parte de seu fundo, encostando à Calçada do Duque, com entrada no pequeno Largo defronte da Rua da Condessa. Em 1863, Ant6nio Florêncio dos Santos adquiriu a Aulette, para a sua Escola Académica, de bom nome alfacinha, a parte do edifício sobre o Largo da Rua da Condessa, e a extinta Companhia de Carruagens [Lisbonenses] comprou o edifício, com seu pátio sobre S. Roque.Quando em Lisboa os trens entraram em desuso, a Companhia meteu em S. Roque — onde alardearam coches principescos e episcopais — os automóveis de «remise». Foram de há vinte anos [c. 1918]. No primeiro andar do prédio, com frente para o Largo, instalou-se em 1917 um jornal, de nomeada em Lisboa pelo seu feitio literário e noticioso, «A Manhã», de que foi principal fundador e animador o distinto jornalista Luiz Derouet, embora a direcção estivesse a cargo de Mayer Garção; êste jornal acabou em 1922. Por essa época liquidou também a Companhia de Carruagens, e o prédio foi adquirido por Deniz M. de Almeida que tomou o activo e passivo da Companhia. Foi êste capitalista quem em 1926 vendeu à Misericórdia de Lisboa o que restava, desfigurado em absoluto, do antigo Palácio Niza.E logo em 1927 a Companhia Portuguesa de Caminhos de Ferro adquiriu o edifício da Escola Académica, transferida para o Monte Agudo, à Penha de França, onde ainda se mantém.As obras de adaptação aos serviços da Misericórdia sabre fundamentos antigos, e aproveitando as paredes do Largo e da Calçada, foram dirigidas pelo construtor Touzé, sob o risco do arquitecto Tertuliano Marques.
E sabre o Palácio Niza — de que tanto havia a dizer da época em que foi residência prelatícia, e do tempo em que foi sede de um dos mais interessantes jornais que tem havido em Portugal — nem mais palavra.
No muro que divide, actualmente, o edifício da Misericórdia daquela sede de escritórios da C. P. — no qual corria um lanço da muralha de D. Fernando, cuja relíquia está de pé-ainda existe uma lápide, que não se vê da rua, e que diz: «Êste lanço do muro que El-Rei D. Fernando acabou em 1413 foi conservado e reparado por Francisco José Caldas Aulete em 1840». 1413 — é a era, e que corresponde ao ano de 1375. Ainda há semanas vi a lápide, que chegou, a andar perdida durante obras no edifício.
N.B. Da Misericórdia de Lisboa, falaremos numa próxima peregrinação.
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Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. V, pp. 81-87, 1938.