Estamos de volta ao velhinho Sitio dos Remolares, e ao afamado Hotel Central, desta vez na companhia de Marina T. Dias e de Eça de Queiroz. Delineada pelos engenheiros do Marquês de Pombal, a futura Praça do Duque da Terceira permaneceu quase deserta até ao início do século XIX, constituindo então apenas parte dos vastos areais que delimitavam sul de Lisboa. Mesmo após a construção dos primeiros quarteirões a nascente e a poente, o rio chegava até ao extremo sul do largo, formando uma pequena praia no local onde mais tarde seria construída a estação de caminho de ferro da linha de Cascais. Contígua à praia, a Praça dos Remolares tinha já sido ampliada pelas obras de construção do Aterro, mantendo na tradição oral o nome do antigo cais: Sodré.
Falar do Cais do Sodré é também falar da Lisboa queirosiana — e do seu Hotel Central, Eça refere-o em Os Maias, A Capital, O Primo Basílio e A Correspondência de Fradique Mendes. A primeira hospedaria que ocupou o quarteirão com os números 20-27 do Largo (antigos números 3 a 11) chamava-se Estrella Branca (c. 1835). Em 1838 fora já trespassada à francesa Madame Lenglet que lhe deu o título de Hotel de France.
(Grand) Hotel Central |c. 1875| A oitocentista praça dos Remolares ainda sem a estátua do Duque da Terceira (1877) vendo-se ao fundo a primeira ponte de acesso aos barcos; no local onde se vê um candeeiro existiu, até 1874, um relógio de sol, conhecido por Meridiana dos Remolares. Rua Bernardino Costa antiga do Corpo Santo; à esq. nota-se a embocadura da Rua do Alecrim com o Alfaiate Rego (Rego Tailor) no gaveto leste. J.. Laurent, in Lisboa de Antigamente |
Sobre o rio, a tarde morria numa paz elísia. O peristilo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no colo. Uma mulher passava, alta, com uma carnação ebúrnea, bela como uma deusa, num casaco de veludo branco de Génova. O Craft dizia ao seu lado: Très chic. E ele sorria, no encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de coisas vivas.(Eça de Queiroz, ln Os Maias, 1888)
Com uma sólida fama e um excelente serviço de mesa, o hotel recebeu hóspedes ilustres, entre eles o compositor Franz Liszt, na temporada de 1844-1845. Novamente trespassado (c. 1855), transforma-se no Hotel Central, supra-sumo da possível opulência lisboeta, com as suas ceias elegantes e as suas belas janelas então viradas para o Tejo.
O Central foi, na Lisboa da segunda metade de Oitocentos, aquilo que o Avenida Palace viria a ser na Belle-Époque, ou o Aviz no tempo da Segunda Grande Guerra. Recebeu reis e diplomatas famosos, figuras mundanas e celebridades do universo das artes. Foi também num dos seus quartos que o próprio Eça de Queiroz terá pedido ao conde de Resende a mão da irmã deste, Emília de Castro Pamplona, sua futura mulher. O episódio é narrado por Luís Pastor de Macedo.
Hotel Central, depois das adaptações sofridas por volta de 1920 |c. 1936| Praça Duque da Terceira No gaveto norte deste edifício estiveram vários botequins célebres. À O primeiro foi o «jacobino» Café do Grego; o último foi o Café Londres, encerrado em 1935.Mário Novais, in Lisboa de Antigamente |
«Numa das suas vindas a Portugal, informado que o conde, vindo do Porto, se hospedara em Lisboa no Hotel Central, e apreciando em extremo a convivência daquele seu grande amigo, [Eça] mandou também as suas malas para o mesmo hotel e ali ficou durante largos dias.
Certa manhã, quando [...] se encontrava no quarto do seu amigo, justamente na ocasião em que este, de cara ensaboada, se dispunha, com a navalha na mão, a barbear-se, o criado, pedindo licença, entrou e entregou uma carta que viera pelo correio.
— Vê lá, menino, o que aí vem -—- diz o conde a Eça de Queiroz.
— É uma cartada tua irmã.
— Faze favor, abre-a e vê o que diz essa teimosa.
— Faze favor, abre-a e vê o que diz essa teimosa.
O grande escritor obedeceu e ao terminar a sua leitura, depois de a dobrar vagarosamente, diz a Rezende:
— Peço-te mão de tua irmão».
— Peço-te mão de tua irmão».
(Luís Pastor de Macedo notas em A Ribeira de Lisboa por Júlio de Castilho, vol. 4)
Hotel Central, depois das adaptações sofridas por volta de 1920 |c. 1936| Praça Duque da Terceira; Cais do Sodré e Mário Novais, in Lisboa de Antigamente |
O Hotel Central encerrou em 1919, após um breve período de crise económica, distantes que iam já os hábitos de convívio da Lisboa queirosiana. A Sociedade Estoril, nova arrendatária, mandou então proceder a obras de vulto na fachada e interiores do edifício, cujas características gerais pouco têm agora a ver com a da casa que albergou Eça, Ramalho ou Guerra Junqueiro. O próprio Cais do Sodré sofrera enormes alterações ao longo do meio século de existência do Hotel Central. Por volta de 1880 a praia chegava ainda sé ao larguinho posteriormente ajardinado (Jardim Rogue Gameiro, plantado entre 1912 e 1915), e alguns quartos do Central estavam, como era uso dizer-se, «sobre o no». Perderam esse privilégio em 1907, vendo erguer-se-lhes à frente o edifício da Administração do Porto de Lisboa (onde está o célebre relógio com a «Hora Legal»). O terreno era tão incerto (basicamente areia da praia, movimentada pelas marés) que foi necessário fazer assentar todas as paredes desse prédio sobre estacaria. Ao centro da praça esteve, até 1874,um relógio de sol muito célebre e muito troçado: a «Meridiana dos Remolares», apeada para que desse lugar ao monumento em homenagem ao Duque da Terceira.
Hotel Central, depois das adaptações sofridas por volta de 1920 |c. 1936| Fachada S. sobre o Cais do Sodré e Travessa do Corpo Santo; Praça Duque da Terceira Mário Novais, in Lisboa de Antigamente |
MARINA, Tavares Dias, Lisboa Desaparecida, vol. 6, pp. 179-184, 1989.