Sunday, 29 August 2021

O Rocio d'Eça

"Vamos nós tomar esta tipóia e abalar para o Ramalhete?
Eram quatro horas, o sol curto de Inverno tinha já um tom pálido.
Tomaram a tipóia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu — parou, sacudiu ardentemente a mão no ar. E então Carlos exclamou, com uma surpresa que já o assaltara essa manhã no [hotel] Braganza: [...]"
(Eça de Queiroz, ln Os Maias, 1888)

Praça Dom Pedro IV, antiga do Rocio [1897
Cena de rua: gente, tipóias de praça, coupés, choras, e os pesados «»americanos rangendo nas calhas — ou fora delas, como parece ser o caso do «americano» da Stephenson.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

No Rocio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca "do Arsenal"; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu abafava — e na noite escura, a coluna da estátua de D. Pedro tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada.
Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. "Que horror de cidade!" — pensava. — "Que tristeza!"
(Eça de Queiroz, ln O Primo Basílio, 1878)

Praça Dom Pedro IV, antiga do Rocio [post. 1902
Por decreto de 31/10/1836 publicado no Diário do Governo a Praça do Rossio passou a denominar-se Praça de Dom Pedro e esta, por Edital de 26/03/1971, passou a designar-se Praça D. Pedro IV.
Paulo Guedes, in Lisboa de Antigamente

Friday, 27 August 2021

O Rocio Velho

"Do Rocio, o ruido das carroças, os gritos errantes de pregões, o rolar dos americanos, subiam, n'uma vibração mais clara, por aquelle ar fino de Novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul-ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as copas mesquinhas das árvores do município, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar avelludado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco n'aquelle abafado gabinete e resvelando pelos velludos pesados, pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n'uma indolência e n'uma dormência."
(in Eça de Queiroz, Os Maias, 1888)

O Rossio Velho |séc. XIX|
As «ondas» negras e brancas do Rossio datam de 19448-4948; Teatro Nacional Almeida Garrett, desde 1910 «de D. Maria II»; Convento da Encarnação; Monumento a Dom Pedro IV; Fonte Monumental do Rossio (1889); Fonte dos Anjinhos (1882); Americano, Tipóia; calçada portuguesa; Quiosque dos Libertários; Urinol; observe-se, como curiosidade, a lanterna do 1.º candeeiro à frente, pintada com publicidade ao Coliseu dos Recreios.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

"Maior e mais abrutada, talvez seja. Mas não é esta lindeza do nosso Rocio, o ladrilhinho, as árvores, a estátua, o teatro... Enfim, para meu gosto e para o regalinho de Verão, prefiro o Rossio... E já o disse aos turcos!"
(Eça de Queiroz, in A Relíquia, 1887)
O Rossio Velho |ant. 1887|
O Rossio foi empedrado, em xadrez, em 1837; note-se a ausência dos lagos — «fontanas» diriam os italianos — que só viriam a jorrar água em 1889; O Teatro Dona Maria foi inaugurado em 1846.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Sunday, 22 August 2021

Rua de São Mamede e o antigo Largo do Correio-Mor

Deve o seu nome à Paróquia de São Mamede que aqui se situava — recorda-nos Norberto de Araújo.
Depois do Terramoto este local ficou sendo conhecido por "monturos de S. Mamede" [...]
Este largo, fazendo parte da Rua de S. Mamede, e defronte do edifício Penafiel, foi construído com sua rotunda e cortina há relativamente pouco tempo — 1864 — pela Câmara Municipal com o auxilio financeiro do Conde de Penafiel, descendente dos antigos Correios Mores, de apelidos Gomes da Mata. Compreende-se, assim, a denominação Travessa da Mata (melhor seria "do” Mata) que sobe, pelo nossa esquerda, em cotovelo, desde o Largo até entroncar na Calçada do Conde de Penafiel. O letreiro pomposo desta artéria foi mandado fazer pelo próprio Conde em 1867.

Rua de São Mamede e o antigo Largo do Correio-Mor, dístico  tradicional  que provinha  do  século  XVIII |190-|
Antes Rua Nova de São Mamede (1889); Calçada Conde Penafiel e, ao fundo, a Travessa do Mata.
Paulo Guedes, in Lisboa de Antigamente

Observa daqui aquele renque de casitas modestas, defendidas da Calçada por cortina de ferro — antigo pátio do Lindim [ou Landim] — , e que oferecem certo pitoresco. Debruçam-se, jeitosamente, sobre a serventia em curva; tal como aquela outra casa pequenina, na Travessa da Mata, pitoresca pela lei dos contrastes, estão certamente condenadas a desaparecer.==

Rua de São Mamede e o antigo Largo do Correio-Mor, dístico  tradicional  que provinha  do  século  XVIII |190-|
Antes Rua Nova de São Mamede (1889); Calçada Conde Penafiel
Paulo Guedes, in Lisboa de Antigamente

Nota(s): Em meados do séc. XX foi colocado neste Largo o pano de fachada do antigo Chafariz das Mouras.
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Bibliografia
ARAUJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. II, pp. 23-24, 1938.

Friday, 20 August 2021

Rua dos Duques de Bragança que foi «da Luta»

A primeira designação desta artéria foi Rua Duque de Bragança. Com a implantação da República passou a Rua da Luta (edital de 18/11/1910) e na década de cinquenta do séc. XX retornou ao nome inicial embora no plural.

Nesta artéria, antiga «da Luta» — num terreno pertencente à Casa de Bragança — foi construído o elegante Teatro D. Amélia, tendo começado as obras em Junho de 1893, e inaugurando-se os espectáculos em 22 de Maio de 1894. Logo depois do advento da República, em 1910, foi o nome do teatro mudado para teatro da República, e mais tarde para teatro de S. Luiz, do título honorífico do seu empresário visconde de S. Luiz de Braga.
Em 13 de Setembro de 1914 ardeu completamente o edifício, tendo sido reconstruido aproximadamente com o mesmo risco, reabrindo em Janeiro de 1916.

Rua dos Duques de Bragança [1913]
Efeitos do assalto ao jornal «A Nação» aquando da revolta monárquica de 21 de Outubro de 1913 dirigida por João de Azevedo Coutinho. Embora prevista também para o Porto, acaba por se restringir à capital com a destruição das redacções dos jornais «O Dia» e «A Nação» e alguns estragos no Museu da Revolução.
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente


Bibliografia
CASTILHO, ,Júlio, Lisboa antiga, 2ª ed., 1937.
cm-lisboa.pt.

Sunday, 15 August 2021

Rua do Arsenal

O topónimo Rua do Arsenal advém de ter existido no local o Arsenal Real de Marinha (à dir.), mandado construir por D. Manuel os chamados estaleiros da Ribeira das Naus. O terramoto de 1755 destruiu esse importante complexo, tendo sido reconstruído em 1759 segundo projecto de Eugénio dos Santos. No início da segunda metade do séc XIX, o Arsenal da Marinha começa a adaptar-se à construção de navios de ferro movidos a vapor. Este possuía um dique, construído em 1792, destinado à reparação dos navios que foi atulhado em 1939 aquando da abertura da Av. Ribeira das Naus. Hoje alberga diversos serviços da Administração Central da Marinha de Guerra.

Rua do Arsenal |1858|
Antiga Direita do Arsenal antes Rua do Arco dos Cobertos; Largo do Corpo Santo (esq.); à dir., destaca-se
o Arsenal da Marinha (oficinas); ao fundo, na embocadura do Terreiro do Paço e o arco erigido por ocasião
da chegada da princesa Estefânia a Lisboa, em 17 de Maio de 1858, vinda de Düsseldorf, para casar
com o rei D. Pedro V.
Amédée de Lemaire-Ternante, in Lisboa de Antigamente

Da porta do Arsenal — recorda o ilustre Norberto de Araújo — , para poente (Rua do Arsenal fora, então Rua do Arco dos Cobertos) ficava a Casa da Ópera, construída dois anos antes do Terramoto; defronte do Pátio citado da Capela, do lado sul, isto é, na Rua hoje do Arsenal, entre a face do edifício onde estão repartições dos Correios, e a face lateral da Câmara, rasgava-se um não grande Largo do Relógio ou das Tendas da Capela.== 

Rua do Arsenal |191-|
Antiga Direita do Arsenal antes Rua do Arco dos Cobertos; Largo do Corpo Santo (esq.); à dir., 
o Arsenal da Marinha (oficinas); ao fundo, destaca-se na embocadura do Terreiro do Paço
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Friday, 13 August 2021

Carros «americanos» no Terreiro do Paço

Data de 1803 o aparecimento do omnibus, puxado a muares, para a exploração dos quais se constituiu uma Empresa de Transportes com sede na Praça do Pelourinho. No entanto, incómodos, caros e raros, o povo miúdo pouco beneficiou com eles. Verdadeiramente populares e servindo já vastas zonas da cidade foram os seus sucessores, os carros americanos, inaugurados em Lisboa em 1874.

Carros «americanos» no Terreiro do Paço [c. 1895]
Rua do Arsenal; Arco Triunfal da Rua Augusta
Fotógrafo não identificado,
in Lisboa de Antigamente

Sunday, 8 August 2021

Rua da Alegria

A razão porque se chama "da Alegria" não a sei — diz Norberto de Araújo — , nem creio que alguém a conheça. Matos Sequeira, que muito estudou (não se limitou a apontar) estes sítios, não nos diz algo; conjectura. Por o local ser ameno, lavado de ares, ridente por natureza? Eu lembro que as designações de sítios partiam quási sempre de lindas invocações religiosas, tal a "Glória", a "Estrêla". Ora eu adquiri, há anos, uma velha imagem de N. Srª da Alegria, e que bem pode corresponder a uma invocação pessoal, caprichosa, pois "Alegria" não consta dos oragos de qualquer região do país. Mas também pode suceder que a poética religiosa se comprazesse numa invocação, que não chegou até nós em documento vivo. A Alegria, pois, é posterior ao Terramoto. [...]
(ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XIV, p. 28, 1939)

Rua da Alegria [séc. XIX]
A 1ª transversal é a Rua de Santo António da Glória; em cima, a Rua da Mãe de Água
O topónimo Rua da Alegria foi atribuído pela Câmara Municipal de Lisboa, 
através de Deliberação Camarária datada de 18/05/1889 e Edital de 08/06/1889, 
à antiga Rua Nova da Alegria.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Friday, 6 August 2021

Profissões de anranho: Venda ambulante de pão

A serventia [Rua Primeiro de Dezembro] — recorda-nos o ilustre Norberto de Araújo — parece que fora chamada pelo vulgo, no tempo de Pombal, depois do Terramoto, Rua Nova das Hortas e Rua das Hortas (e que constituiria referência oral à Horta da Mancebia ou a horta dos terreiros do Duque de Cadaval ou dos Condes de Faro, mais para Norte). Antes de 1755 a Rua tinha já o traçado sensivelmente idêntico ao de hoje, e chamava-se Rua de Valverde – lindo nome.

Profissões de antanho: Venda ambulante de pão [séc. XIX]
Esquina da Rua do Jardim do Regedor com a Rua Primeiro de Dezembro
Ao fundo nota-se a fachada da Estação de Comboios do Rossio.

Chaves Cruz, in Lisboa de Antigamente
Nota(s): o local da foto não está identificado no abandalhado amL.

Sunday, 1 August 2021

Ermida da Saúde

Eis-nos, agora, diante da Igreja de N. Senhora da Saúde, a da famosa procissão que constituía um dos encantos populares religiosos de Lisboa do século passado [XIX], e que perdurou até à República. 

Neste sítio se elevava no século XVI, logo no começo (1506), uma ermida da invocação de S. Sebastião, advogado contra as pestes, construção que foi da iniciativa dos artilheiros da guarnição de Lisboa.
Em 1596, por deliberação do Arcebispo D. Miguel de Castro, a igrejinha converteu-se em paroquial de S. Sebastião (da Mouraria), desanexada da de Santa Justa, e assim o bairro tomou independência como freguesia. (...)

Ermida de Nossa Senhora da Saúde [190-]
Praça do Martim Moniz; Rua da Mouraria
José Artur Bárcia,
in Lisboa de Antigamente
Ermida de Nossa Senhora da Saúde [ant. 1910]
Praça do Martim Moniz; Rua da Mouraria
Procissão de Nossa Senhora da Saúde
Alberto Carlos Lima,
in Lisboa de Antigamente

A sede da paróquia em 1646 foi levada para a Igreja do Socorro; a actual Igreja da Saúde continuava a chamar-se de S. Sebastião, sem honras de Paroquial, mas muito mais representativa. 
Só em 1662 a Igreja de S. Sebastião passou a chamar-se de N. S. da Saúde, quando a imagem foi transferida do Colégio de Jesus [ou dos Meninos Órfãos], de que te falei, aqui a dois passos, para a actual «residência». E de Nossa Senhora da Saúde passou a ser até hoje [1938]. S. Sebastião esqueceu.
Pelo Terramoto o templo recebeu dano, mas pouco, porque logo dois anos depois estava restaurado e aberto ao público.»
A Ermida — melhor é classificá-la assim — constitui um dos restos piedosos de Lisboa velha, embora os artilheiros hoje já se não preocupem com a devoção. Oferece uma certa ingenuidade; lembra uma capela de aldeia, pois não lembra?

Tem uma só nave, e mais não precisa. Os altares laterais são os de Nossa Senhora piedade e de Cristo Crucificado, e as imagens são em pintura e não escultura, obra do pintor setecentista António Machado Sapeiro. Na capela-mor vês as imagens de Santo António, S. Sebastião, de roca, e sempre muito alindada. O retábulo que notas é do escultor Brás de Oliveira. São interessantes os azulejos oitocentistas da Igreja.

Aí tens, Dilecto, o que é a Igreja de que falam os versos de um fado, até há dois anos, muito em voga:
Há festa na Mouraria
é dia da Procissão
da Senhora da Saúde...
Ermida de Nossa Senhora da Saúde [ant. 1910]
Praça do Martim Moniz; Rua da Mouraria
Saída do andor com a imagem de Nossa Senhora da Saúde
Alberto Carlos Lima,
in Lisboa de Antigamente

Mas na Mouraria, hoje, já não há procissão. A procissão da Saúde era dos mais curiosos espectáculos da Lisboa religiosa, com um carácter diverso da dos Passos e da do Corpo de Deus ou S. Jorge.
A primeira vez que se realizou foi em 20 de Abril de 1570. A última em 20 de Abril de 1910. Saia de manhã cedo da Mouraria, ia à Sé onde se cantava um Te-Deum, e depois a S. Domingos, onde havia sermão. Recolhia ao entardecer à Mouraria — e era de ver-se.
Na procissão iam as três imagens citadas, de S. Sebastião, dos Artilheiros, e da Saúde, ambas da mesma confraria, e a de Santo António que andou sempre ligado a S. Sebastião aqui no bairro, de outra irmandade. Música religiosa, bandas militares, filarmónicas locais; foguetes, sinos, alarido típico do sítio; «anjinhos», soldados vestindo capa vermelha sobre a farda, e, nos seus últimos trinta anos, o Infante D. Afonso, como figura de destaque, simpática ao povo. O Capelão, a Amendoeira, o Outeiro, o Coleginho, os Álamos, despejavam-se sobre a Mouraria: quadro de costumes lisboetas dos mais sugestivos que pode imaginar-se, sem a grandeza da procissão do Corpo de Deus, nem a compostura fidalga da dos Passos da Graça — plebeia, original, bairrista, enternecedora.

Enquadramento da Ermida da Saúde na Pç. do Martim Moniz depois das demolições na Mouraria [1949]
A igreja actual é de pequenas dimensões e data do século XVIII. É um símbolo da arquitectura religiosa barroca embora a sua fachada principal e simples seja atribuída ainda ao mestre João Antunes dos inícios de 1700. 
Artur Pastor[?], in Lisboa de Antigamente

N.B.  Os artilheiros da Guarnição de Lisboa, denominados por bombardeiros, mandaram erguer em 1505, uma pequena ermida dedicada a São Sebastião, padroeiro e advogado da peste, em cumprimento da promessa feita ao mártir pelo fim da epidemia que nesse ano se estendeu por toda a cidade e que matou muitos habitantes.
Em Outubro de 1569, o rei D. Sebastião devido a mais um surto epidémico que matou milhares de pessoas, pede ao Senado da Câmara de Lisboa a construção de uma igreja maior, consagrada a São Sebastião, e em Dezembro, ordena que a sua edificação seja efectuada na Mouraria perto do local da antiga ermida.

Ermida de Nossa Senhora da Saúde, interior [1902-01-25]
Praça do Martim Moniz; Rua da Mouraria
O culto a Nossa Senhora da Saúde é muito importante na cidade de Lisboa e anualmente realiza-se a procissão em agradecimento e protecção à Virgem, tradição que se mantém desde o século XVI.
Machado & Souza, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. III, pp. 76-77, 1938.
SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo (dir.), Dicionário da História de Lisboa, 1.ª ed., Sacavém, Carlos Quintas & Associados – Consultores, 1994, pp. 874-876.

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