Sunday, 30 August 2020

Galgou a Calçada do Alecrim

A chuva recomeçara; e ao fundo da Calçada do Alecrim separaram-se, quando soavam devagar as onze horas na torre da igreja de S. Paulo.

Artur galgou a calçada do Alecrim, impressionado, exaltado. Decidia-se agora a abandonar todos os hábitos de sociedade, as esperanças vãs em amores fictícios, a literatura puramente lírica; [...]

(QUEIROZ, Eça de, A Capital, 1877)


Rua do Alecrim [ant. 1900]
Largo do Chiado, vulgarmente conhecido pela denominação de Largo das Duas Igrejas ou Praça do
Loreto, sendo constituído pelo troço da Rua Garrett que findava na Praça Luís de Camões (entre 1880
e 1925). Nofim do século XV era a estrada que vai ter a Cata-que-farás, segundo o olisipógrafo Luís
Pastor de Macedo.
Estúdio Horácio Novais.  in Lisboa de Antigamente

O nome de rua do Alecrim — lê-se no Archivo Pittorescoproveio de uma ermida dedicada a Nossa Senhora do Alecrim, que ahi fundou, em 1641, uma senhora viúva e de nobre família, chamada D. Anna de Vilhena.
Estava situada esta ermida junto da porta de Santa Catharina, e esta porta occupava o fundo de um largo pouco espaçoso, ao presente denominado das Duas Egrejas, no sitio onde começa a descer a rua das Portas de Santa Catharina. O largo era então guarnecido, da parte do norte e do sul, por dois lanços da muralha, que iam formar dois angulos: o do norte, proximo da egreja do Loreto, que ficava de fora, e do qual proseguia o muro ao largo de S. Roque: e o do sul no lugar em que vemos o predio contiguo à egreja de Nossa Senhora da Encarnação, d'onde o muro continuava, separando as ditas ruas do Alecrim e da Cordoaria Nova, depois Thesouro Velho [actual Rua António Maria Cardoso].==
(in Archivo Pittoresco, 1862, vol. 5, p. 398)

Rua do Alecrim [ant. 1900]
Perspectiva tomada da Rua da Misericórdia (antiga de S. Roque)
José Artur Bárcia, in Lisboa de Antigamente

Friday, 28 August 2020

Travessa da Arrochela

Já pelo começo do século passado [XIX] o local havia sido urbanizado, com rectificações de arruamentos naturais, que desde os dois séculos anteriores provinham: as Ruas do Vale e das Parreiras, e a Travessa da Arrochela.
(ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. V, p. 40, 1938)
 
Travessa da Arrochela [s.d] [c. 1940]
Ao fundo vislumbra-se o Palácio de São Bento.
Eduardo Portugal, 
in Lisboa de Antigamente
 
A nomenclatura desta Travessa foi aprovada, em conjunto com outros arruamentos independentemente da freguesia na reunião da Comissão Municipal de Toponímia, Acta nº 6 de 11 de Abril de 1944. A Travessa da Arrochela aparece já como fazendo parte da Paróquia da Freguesia de Nª Srª das Mercês com data de 1770, portando posterior ao Terramoto. 

Travessa da Arrochela [c. 1945]
Perspectiva tomada da Rua de São Bento.
Fernando Martinez Pozal, 
in Lisboa de Antigamente

Sunday, 23 August 2020

Palácio Alarcão

O antigo Palácio Alarcão não oferece interesse descritivo, pois é  hoje uma sombra do passado, como tantos em Lisboa. O  edifício mostra cinco janelas de sacada, e outras tantas de peito, sobre a  Rua da  Boa Vista, e  seis de  sacada sobre a Rua das  Gaivotas, todas elas da época de restauro no  século passado [XIX].


As casas de D. João de Alarcão, à Boa Vista — e que em tempos poderiam ter  merecido  a qualificação de  palácio — remontam, no  núcleo primitivo, pelo  menos ao  segundo quartel do  século  XVII. Situam-se ao Conde-Barão na esquina das Ruas da  Boa  Vista  e  das  Gaivotas. Em 1641 eram essas casas  de  D. João Soares de Alarcão e  Melo, 8.º Alcaide-mor de  Torres Vedras, filho  de D. João  Soares de  Alarcão, mestre sala da corte, e poeta, que foi 2.° Conde de  Torres Vedras e 7.º Alcaide-mor. Não se sabe quem  mandou erguer o  primitivo palácio.

Palácio  Alarcão  [c. 1952]
Portão seiscentista — na esquina da  Rua das Gaivotas, n.º 2,  para a  Rua Fernandes Tomás — de  grossas colunas e  verga abauladas e cunhais de cantaria, sólidos.
Salvador de Almeida Fernandes, 
in Lisboa de Antigamente

Aquele D.  João Soares de Alarcão e Melo, depois da Restauração, tomou o partido de Espanha, combateu contra Portugal, recebeu os títulos de  8.º Conde de Torres Vedras e 1.º Marquês de  Turcifal;  as casas da Boa Vista foram-lhe confiscadas e arrendadas a Francisco de Brito Freire, mas em 1668 — assinada a paz — voltaram à posse de D. João,  de quem em 1669 se transmitiram ao filho, D. Francisco, que fora  também partidário de Filipe IV.  Após  um demanda, em 1677 o  palácio dos Alarcões passou ao 2.º  Conde de Avintes, D.  António de Almeida, cuja mulher era neta de  D.  João de Alarcão, sendo então o prédio sub-rogado ao inquilino Brito Freire, morgado de Santo  Estêvão e genealogista. Teve depois o  palácio vários possuidores; quando das invasões francesas era de  Francisco José Pereira e no final do  século passado [XIX] de D. Paulina Benevides. Hoje [1952] pertence à viúva de  António Duarte Oliveira, e está,  em  parte  arrendado à Câmara Municipal, que  ali  mantém a  escola primária n.º 2,  na  parte  nobre antiga, ocupando também dependências a  Liga  28  de  Maio  e um  serviço da Caixa  Geral de Depósitos, além  de  dois  estabelecimentos.

Largo do Conde Barão e Rua da Boavista [séc. XIX]
Observa-se o  Palácio Alarcão — 2.º edifício à esq. — na esquina com a Rua das Gaivotas.
Fotógrafo não identificado, 
in Lisboa de Antigamente

No  tempo da primeira invasão francesa o palácio foi muito frequentado pelos  generais Laborde, Foy e  outros, e por parentes de Junot.
Um  dos grandes salões ostentava pinturas atribuídas a Volkmar Machado.
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Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Inventário de Lisboa, Fasc. IV, Lisboa, 1952.

Friday, 21 August 2020

Travessa do Sequeiro

As artérias que cortam a Bica, transversalmente — diz Norberto de Araújo —, são esta Travessa do Sequeiro, a da Portuguesa, a da Laranjeira e a do Cabral, tôdas com a mesma perspectiva e balanço de nivel, descendo por escadinhas das Chagas, encontrando o vale — onde corre o ascensor — e voltando a subir, sempre por escadinhas, à Rua do Marechal Saldanha.

Este arruamento que se estende da Rua das Chagas à Rua Marechal Saldanha e com escadinhas que facilitam a circulação após o aluimento do Alto das Chagas ocorrido em 1597, já aparece referenciado na freguesia de Santa Catarina nas plantas da remodelação paroquial aprovada em 1780.

Travessa do Sequeiro [194-] 
Rua Marechal Saldanha; frades de pedra
Fernando Martinez Pozal, in Lisboa de Antigamente

Dados os topónimos agrícolas na zona é provável que a origem deste perpetue a memória do local, já que, nas descrições anteriores ao Terramoto, aparece o sítio do Sequeiro das Chagas e quase no seguimento deste existiu uma Travessa do Sequeiro das Chagas que, por Edital municipal de 20/08/1926, passou a denominar-se Travessa de Guilherme Cossoul.

Travessa do Sequeiro [c. 1960]
Rua Marechal Saldanha; Rua Chagas
Artur Pastor, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p. 68, 1939.
cm-lisboa.pt

Sunday, 16 August 2020

Bairro Chinês, Marvila

A construção das barracas fazia-se de noite porque quem as construía trabalhava, normalmente, durante todo o dia. Mas também se esperava pela noite para esconder o trabalho de construção dos olhos dos polícias.


O Bairro Chinês, o maior bairro de barracas da zona oriental de Lisboa, ficava onde hoje podemos ver os bairros Marquês de Abrantes, Alfinetes e Salgadas e Quinta do Chalé.
A confiar apenas na descrição da rua principal, a impressão que nos fica do Bairro Chinês está longe de ser a melhor. Quando chovia, as águas que desciam a encosta desde o campo do Clube Oriental de Lisboa – mais conhecido, simplesmente, por Oriental – até à passagem de nível arrastavam consigo a terra dos arruamentos improvisados, abrindo um canal de lama que dividia o bairro ao meio. “Passava um regato no meio, onde deitavam as necessidades”, descreve um morador. “E tinha umas tábuas para se passar de um lado para o outro”. Um verdadeiro riacho no meio de Marvila.

Bairro Chinês [195-]
Marvila, junto ao campo de futebol do Oriental
Judah Benoliel, 
in Lisboa de Antigamente

É sabido que, embora não seja oficial, o epíteto de Bairro Chinês se tornara habitual. No entanto, o nome não é consensual. A origem já foi apontada a um suposto proprietário de ascendência oriental. “O nome Bairro Chinês não tinha nada que ver com os nomes das quintas”, diz, construindo o puzzle. “O que aconteceu foi que alguém se lembrou que, por causa da densidade das pessoas, aquilo parecia a China.” De alguma forma, a analogia não pareceu errada à maioria das pessoas, já que “o bairro tinha mais ou menos duas mil famílias”. Assim ficou. Independentemente do nome, este bairro foi porto seguro para muita gente que fugia à miséria e à desesperança que grassavam nas terras do interior do país, ofuscando qualquer falta de condições das barracas de chapa e madeira.
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Bibliografia
A vida no Bairro, O Bairro Chinês na primeira pessoa, João Santana da Silva, historiador, 2015.

Friday, 14 August 2020

Beco de São Miguel: casa de Ressalto

Neste e naquele beco, no labirinto de pátios, de socalcos, e ladeiras ou praças minúsculas, Alfama é um alfobre de casitas de ressalto. São iluminuras do bairro que a moderna «limpeza» urbanística do velho aglomerado respeitou. A da Rua da Regueira, por exemplo, ou do Becos das Cruzes, do Arco do Salvador, da Adiça, ou tantas outras são exemplares representativos do tipicismo do burgo, a sua certidão de idade. Todo o seu traçado é um desafio a qualquer concepção de arquitectura delineada: só o acaso, o grande inspirador de todo esse amálgama urbanístico, pode ter erguido tão características fachadas. 

Beco de São Miguel  [1930]
Casa de Ressalto (após restauro)Igreja de São Miguel antes da remoção do gradeamento levado a cabo na década de 1960 [vd. imagem abaixo.
Estúdio Mário Novais, in Lisboa de Antigamente

Repare-se no «jogo» de empenas salientes e desencontradas, na assimetria das janelas, nos varões oblíquos onde o andar de ressalto assenta como que disposto em docel.
ANDRADE, Ferreira de, «Que diferente és, Lisboa: crónicas alfacinhas», p. 74, Editorial de Publicações Turísticas, 1968.

Beco de São Miguel, ao fundo  |1963|
Casa de Ressalto, perspectiva tomada do Largo de São Miguel vendo-se a
Igreja de São Miguel após remoção do gradeamento.

Armando Serôdio, in Lisboa de Antigamente

Sunday, 9 August 2020

Chafariz da Rua dos Anjos

O desaparecido Chafariz da Rua dos Anjos, em forma de meia-laranja, ficava situado em frente à Travessa da Bica dos Anjos e já existia em 1858 [v. carta topográfica]. Em 1900, por pressão do novo alinhamento da rua e por entravar a funcionalidade da linha dos caminhos-de-ferro americanos, um ofício do Serviço Geral de Obras Públicas solicita a demolição da Bica dos Anjos e respectivo tanque, devendo a mesma ser substituída por uma fonte-bebedouro colocada no Largo do Intendente. Terá sido demolido por volta 1907. [cm-lisboa.pt]

Chafariz da Rua dos Anjos [1907]
Antiga Rua Direita dos Anjos
Machado & Souza, in Lisboa de Antigamente
Chafariz da Rua dos Anjos [1907]
Antiga Rua Direita dos Anjos
Machado & Souza, in Lisboa de Antigamente

Chafariz da Rua dos Anjos [delimitado a vermelho]
[Fragmento] Carta topográfica / Folque, Filipe, 1858

Thursday, 6 August 2020

Beco de Maria da Guerra

Ora aqui temos, à esquerda — diz Norberto de Araújo —, o Beco da Maria Guerra, que leva a Santo Estêvão; é uma linha quebrada cheia de reentrâncias, e que abre por umas escadinhas. Nele podes observar apenas umas bizarras moradias no n.° 20, tipo Santo Estêvão.
(ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. X, 1939)

Beco de Maria da Guerra [1945]
Vista tomada da Rua do Remédios
Fernando Martinez Pozal, in Lisboa de Antigamente

Este Beco de Maria da Guerra, que liga a Rua dos Remédios à Rua de Santo Estêvão, já aparece referido nas plantas da freguesia de Santo Estêvão após a remodelação paroquial de 1780 embora se desconheça quem tenha sido a figura de que a artéria guardou a memória.
O olisipógrafo Gomes de Brito aventou que esta Maria da Guerra seria a mãe do poeta Gregório de Matos Guerra, que vivia na Baía em 1630. Por seu turno, o olisipógrafo Luís Pastor de Macedo discordou dessa ideia e apontou que seria mais plausível uma Maria da Guerra mencionada na freguesia da Sé em 1651. [cm-lisboa.pt]

Beco de Maria da Guerra [c. 1900]
Vista tomada da Rua do Remédios
Machado & Souza, in Lisboa de Antigamente

Sunday, 2 August 2020

Profissões de antanho: o engraxador

Lisboa tem o privilégio de possuir os mais artistas engraxadores do mundo — escreve Maria Archer num artigo publicado em 1945 na Revista municipal de Lisboa. A fama duns sapatos lustrados em Lisboa dá que falar. Sei dum escritor espanhol que passa horas nas praças, a rondar Os nossos engraxadores ambulantes, de tal forma se extasia com a perfeição e o ardor do seu trabalho. Dir-se-ia que os estuda, que os admira. Um dia confidenciou-me o resultado das suas observações:
— Nada mas que esto... Les gusta, a ellos hacerlos luzir.

Profissões de antanho: o engraxador [1977]
Largo de S. Domingos
Abrigos destinados aos engraxadores, instalados por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa: ao fundo, observa-se o Palácio Almada.
Fernando Gonçalves, in Lisboa de Antigamente

That is the question... É que o engraxador de Lisboa gosta do seu trabalho e um trabalho de que se gosta faz-se com mira na obra prima. Ele gosta de ver o velho sapato enlameado, poeirento, desboto, retomar cor e lustro sob a aguada colorida de anilina e a untadela de pomada. Depois, com pano e escova, apura-se em realçar as graças do cabedal rejuvenescido. A escova e o pano macio, felpudo, giram lestos nas suas mãos e o sapato lustrado já reflecte a luz como um espelho, já se destaca, sabre o basalto escuro da calçada ou no mármore britado dos passeios, como coisa nova, bonita, agradável de ver e de usar.

Profissões de antanho: o engraxador [1926]
Rua de S. Marta junto ao Convento de Santa Joana (Princesa)
Pequenos engraxadores, à saída da Esquadra da Polícia Cívica de Lisboa (actual PSP), depois de assistirem a uma palestra sobre comportamento cívico dada pelo comandante Ferreira do Amaral.: ao fundo, o Palácio Almada.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

O engraxador ambulante, de Lisboa, é pobre. Vive mal da sua profissão mas mesmo assim, gosta dela porque ela o deixa viver na doçura da rua, em contacto directo com o grande teatro popular da rua. E gosta dela porque ela o deixa ser livre, viver sem patrão, sem horário de trabalho, sem regulamentos. Ordens, imposições, só as recebe da necessidade. A fantasia pode andar com o artista que ninguém a afugenta da sua beira. Vem o domingo... Domingo, dia de catitismo para o homem da rua, já se sabe que rende ao engraxador. Mas se há, nesse domingo, desafio de nomeada, quem é que pensa nos cobres? O engraxador gosta da «bola». Aperta um furo no cinto e compra o bilhete do «peão», que a vida são dois dias e o Benfica é merecedor, isso é que é...  ==

Profissões de antanho: o engraxador [1911]
Arcadas da Praça do Comércio
 Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
ARCHER , Maria, Revista municipal Lisboa, 1945.
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