Embarcámos de manhã cedo para o Barreiro, testa do Caminho de Ferro de Sul e Sueste, na ponte do Terreiro do Paço, em frente do Pavilhão da Marinha. Uma vez em cima das águas, eu, que nunca vira navios, por efeito da transmissão sensorial das gerações, era como se voltasse a encontrar coisas vistas e triviais.
RIBEIRO, Aquilino (1885-1963), Um Escritor Confessa-se. [c. 1902]
Situada frente ao torreão poente da Praça do Comércio, junto ao Arsenal da Marinha, a «ponte do Terreiro do Paço», então um «barracão assente sobre estacaria que envergonha a capital» conforme inteirava o Guia de Portugal de Raul Proença, era a Estação dos Caminhos-de-Ferro e Vapores do Sul e Sueste (projectada para não ter comboios), da qual partiam os vapores para a estação do Barreiro, para a Aldeia Galega (Montijo) e Seixal.
Durante mais de meio século — diz Rodrigues Miguéis — o alfacinha da gema pingou lamentos em frente do barracão que deslustrava a Praça, sala dos passos-perdidos da Europa. Era provisória e durou quase cem anos. Prestou grandes serviços que nunca lhe reconheci. E não é que não tivesse dela boas recordações... Há por esse mundo além muitas e piores fealdades que se encontram servindo, em cidades ricas e orgulhosas: Não importa, aquilo feria-me a sensibilidade ociosa. Odiei-a. Pois bem, inaugurada a estação nova, do lado oposto — mais passeios à noite, considerações urbano-estéticas, lamentos, e tal —, quem-me-acode, que aquilo ofende a melodia geométrica da Praça, a imponência da Alfândega vista do rio, e que sei eu.
MIGUÉIS, José Rodrigues (1901-1980), As Harmonias do «Canelão» - Da Mania das Grandezas, p. 72, 1974
Engalanada por diversas ocasiões, pois ela foi átrio de recepção dos mais ilustres visitantes — Eduardo VII, a rainha Alexandra, o Presidente Loubet, o imperador Guilherme II, Afonso XIII, constam da lista dos chefes de Estado que visitaram Lisboa no início do século XX —, a Praça do Comércio foi também palco de tragédias. Foi na ponte dos Vapores do Sul e Sueste que — ás quatro horas e meia da tarde do dia 1 Fevereiro de 1908 — atracou o vapor que do Barreiro conduzia o rei D. Carlos, a rainha D. Amélia e o príncipe real D. Luís Filipe. Estavam a cem passos da morte.
Fotografia aérea da Praça do Comércio (e da Baixa Pombalina), que ilustra o posicionamento
da antiga Estação dos Caminhos-de-ferro e Vapores do Sul e Sueste (à
esq.) e a Estação Fluvial Sul e Sueste (à dir.) [1932] Manuel Barros Marques, in Lisboa de Antigamente |