No quarteirão entre as Escadinhas da Barroca e a Calçada do Garcia, ali tens o prédio, n.º 14 a 15 com sete portas, que foi o Palácio Regaleira, propriedade no meado do século passado [séc. XIX] de D. Ermelinda Monteiro [Allen] d'Almeida, baronesa e viscondessa da Regaleira, título que passou e se mantém nos Morais Palmeiro; êste prédio pertenceu a Francisco de Sousa Cruz, em 1915? passou por compra a Artur Aires, e hoje [1939] é da Companhia dos Tabacos.
Existiu aqui um clube de jogo e de prazer, impropriamente chamado "Clube Regaleira".¹
O registo mais antigo que se encontra sobre este edifício remonta a
28 de Outubro de 1814, no qual a localização do palácio é descrita no Registo de Descrições Prediais. A localização privilegiada do P
alácio Regaleira numa zona nobre, central e movimentada da cidade, próximo do Rossio e no mesmo L
argo da Igreja de São Domingos fez com que este mantivesse a sua centralidade relativamente ao espaço e vida urbana ao longo dos tempos.
Os d
ados precisos sobre a autoria e data de construção do edifício são desconhecidos. Vários autores sugerem tratar-se de uma edificação do século XVIII, provavelmente anterior ao terramoto de 1755. Segundo J
osé-Augusto França, em gravuras anteriores a essa data, surge representado no mesmo local um edifício que apresenta grandes semelhanças com o actual: um prédio de três pisos, com a fachada principal virada a sul, de arquitectura sóbria e disposição simétrica de portas e janelas, que ocupam de forma regular grande parte da frontaria. É provável que o edifício tenha entrado na posse da
família Allen em período anterior ao de
D. Ermelinda Allen Monteiro d’Almeida, a primeira viscondessa da Regaleira, que teria herdado o Palácio dos seus pais e empreendido os trabalhos de
remodelação entre 1835 e 1842,
conferindo ao edifício a sua traça actual.
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Palácio Regaleira [post. 1933]
Largo de S. Domingos, 14-15
Mário Novais, in Lisboa de Antigamente |
A vida social de grande ostentação e as festas sumptuosas dadas nesta época pela baronesa e viscondessa da Regaleira no seu palácio lisboeta são-nos descritas por Fialho de Almeida:
«A primeira foi em 4 de Março de 1842, e Paulina de Flaugergues aponta-a como uma das mais belas e animadas da estação. Estiveram cerca de mil convidados, e era notável a porção de mulheres bonitas que se encontrava nos salões. A ornamentação da casa em pouco ou nada fora alterada a mais do que costumava ser nos dias ordinários. O palácio de madame Monteiro d’Almeida era um verdadeiro museu de coisas de arte e de elegância, e arcava em gosto e riqueza com a residência dos Palmelas, dos Fronteiras, dos Atalaias, e dos viscondes de Porto Covo […] No pátio da casa, em que tocavam três bandas de regimento, fora improvisado um jardim com laranjeiras, pritchardias e camélias, sob uma tenda de seda, às riscas multicolores, esticada e, lanças e albardas, que aprumavam de roda, mais de catorze ou quinze estátuas de guerreiros.»²
Em 1901 — após ter saído em definitivo (1898) da posse da família Allen — está instalado no Palácio Regaleira o Teatro Eléctrico Mágico. A partir do ano seguinte, funciona nesse edifício o Liceu de São Domingos, um desdobramento do Liceu do Carmo. Segundo o olisipógrafo Appio Sottomayor, terá aí funcionado, pouco tempo antes da implantação da República, a sala de cinema Rossio Palace, na qual se realizam, para alguns espectadores escolhidos e pagantes, sessões especiais com filmes pornográficos que têm lugar pela noite fora49. Já João Paulo Freire refere nas suas memórias «uma exposição-museu de figuras de cera, com uma secção reservada a doenças venéreas» que teria estado no Palácio Regaleira em 1918, aproximadamente.³
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Palácio Regaleira [post. 1933]
Largo de S. Domingos, 14-15
No início do séc. XX esteve aqui instalada sala de cinema Rossio Palace
Mário Novais, in Lisboa de Antigamente |
No mesmo edifício funciona ainda um estabelecimento comercial denominado Vaccaria de S. Domingos e um hotel. A 24 de Março de 1919 o prédio foi vendido à firma Arthur Adriano Ayres, Lda. Este dado, retirado dos Registos Prediais, contradiz a data de transição da propriedade do imóvel que nos é dada por Norberto Araújo nas suas Peregrinações em Lisboa como se pode ler logo no inicio desta publicação: «em 1915? passou por compra a Artur Aires».
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Palácio Regaleira [1910]
Na esquina do Largo de S. Domingos com as Escadinhas da Barroca, observa-se a Vaccaria S. Domingos.
António Novais, in Lisboa de Antigamente |
No que respeita ao Regaleira Club — também mencionado por Norberto de Araújo como Clube Regaleira — há notícia do seu funcionamento entre 1920 e 1922. Contudo, este poderá ter aqui funcionado antes da data indicada. Entre Fevereiro e Maio de 1917 estaria, a julgar pelo nome, aí já instalado o Club Palácio da Regaleira,
que pagava ao Governo Civil de Lisboa a devida licença para prolongar,
todas as noites, as suas diversões para além da meia-noite. Não foi no
entanto possível apurar se este seria ou não o mesmo estabelecimento
conhecido por Regaleira Club em 1920. O seu encerramento em 1923 parece ser consensual.
Com
a sua instalação no Palácio Regaleira e a adopção do nome deste para
sua própria denominação, este clube nocturno procurou claramente
beneficiar do estatuto alcançado e difundido na época da baronesa e viscondessa da Regaleira, aproveitando do edifício a aura que ainda prevalecia de festas sumptuosas e luxuosas.
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«A monumental escada» e «A majestosa sala do “Regaleira Club”» Efeitos da Guerra», ABC, 7 de Julho de 1921 [fotografias de Serra Ribeiro] |
O palácio é vendido à Companhia de Tabacos de Portugal, que compra o imóvel pelo montante de 1.303.000$00 em escritura de 14 de Novembro de 1923.
Os inquilinos multiplicam-se e sucedem-se: um Armazém de Roupas Nogueira Viegas Lda.; a Fotografia Electro Rápida, de Brito Gago Justel; um estabelecimento de instrumentos musicais, de Larcher Castelo Branco, um estabelecimento comercial de artigos de malha, de José Esteves de Almeida; a Empresa Portuguesa de Instalações Eléctricas, Lda.; um estabelecimento de comércio de fruta e um outro de peixe, de Maria Fernandes de Almeida; o Bazar Universal, de Orlando Silva. Por estes anos está também instalada no Palácio Regaleira a Casa das Beiras, instituição de carácter regional que organiza festas e récitas.
No final da década o edifício encontra-se em adiantado estado de degradação: «O palácio estava em mísero estado. Parecia um chavascal. Soalho esburacado, paredes sujas, portas escangalhadas, um pavor.»
Em 1933 a Companhia dos Tabacos arrenda à Ordem dos Advogados o 1.º andar do edifício, que inicia obras de recuperação no palácio. A nova sede da Ordem dos Advogados só é inaugurada em cerimónia solene a 24 de Maio de 1939. Finalmente, a 26 de Janeiro de 1960, a Companhia dos Tabacos de Portugal vende o Palácio Regaleira à Caixa de Previdência da Ordem dos Advogados e Solicitadores pelo preço avultado de 11.000.000$00.
Tudo leva a crer que a traça arquitectónica exterior do edifício se tenha mantido igual desde meados do século XIX, altura em que se realizaram os amplos trabalhos de remodelação. Já o interior do Palácio terá conhecido múltiplas e significativas intervenções, em resultado dos numerosos inquilinos e das diversas actividades que ali tiveram lugar.⁴
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Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p. 81, 1939.
² ALMEIDA, Fialho de, Vida Errante, pp. 334-335, 1925.
³ FREIRE, João Paulo, Lisboa do meu tempo e do passado, Lisboa, 1931-1939, p. 10-11.
⁴ VAZ, Cecília Santos, Clubes nocturnos modernos em Lisboa: sociabilidade, diversão e transgressão (1917-1927), Palácio Regaleira, pp. 76-81, 2008.