Eis-nos, Dilecto, deante do Paço da Bemposta. Observa-me a fachada desta casa paçã e palaciana; tem um certo ar mais aristocrático que fidalgo, mas, no seu conjunto, oferece um indiscutível interesse de arquitectura civil, com indicações puras seiscentistas na frontaria.
Duas noticias te dou já: o adro, com sua escadaria, nem sempre foi como agora se apresenta; era mais avançado, e a sua redução ao espaço e configuração actuais datam de 1860. Quanto ao sítio, onde estamos, êle constituía um pátio do Palácio, fechado nos topos, com muros, onde rasgavam arcos ou portões, mas por onde aliás se fazia passagem pública, e demolidos em 1849.
Foi aqui que uma Rainha, fatigada de pousadas estranhas, se recolheu um belo dia do ano de 1702. D. Catarina de Bragança regressara ao seu país em 1693, trazendo havia já oito anos sobre a sua cabeça
Capela e Paço Real da Bemposta [c. 1910] Paço da Rainha; ao fundo, a Penha de França Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente |
D. Catarina, fiiha de D. João IV, que casara com Carlos II de Inglaterra — a que levou aos ingleses Tânger e Bombaim — enviuvara em 1685 e aborrecida da côrte de Inglaterra, voltou a Portugal em 1693, habitando sucessivamente os Paços Reais do Calvário, o Palácio dos Condes do Redondo, em Santa Marta, os do Conde de Soure, no Bairro Alto, os dos Condes de Âveiras, em Be1ém. E acabou por resolver — construir casa sua.
Achamos que fêz muito bem.
Entrou a Rainha a comprar terrenos a quantos proprietários, que por aqui desfrutavam quintas, hortas e azinhagas, os punham à disposição real. Do Matadouro [actual Praça José Fontana], Estefânia, Gomes Freire, Santa Bárbara e Bemposta de hoje — tudo passou a D. Catarina, que começou a erguer a sua casa neste lugar do Campo da Bemposta em 1694, e já nela habitava em 1702, ainda o edifício não estava concluído. A Carreira dos Cavalos [actual Rua Gomes Freire], ficava-lhe a Norte, acompanhando cêrca e jardins. O Paço não seria sumptuoso, mas merecer cuidados à viúva de Carlos II, que conhecia castelos e palácios de Inglaterra; a Capela, sobretudo, foi enriquecida de obras de arte, algumas trazidas na sua bagagem de rainha-viúva.
Morreu D. Catarina em 1705, e a propriedade passou a seu irmão D. Pedro II, que só lhe sobreviveu um ano. O Paço tornado bem da Corôa foi por D. João V, em1707, doado à Casa do Infantado, tomando dele posse o Infante D. Francisco, falecido em 1752, e passando então a Bemposta para D. Pedro, irmão daquele, depois D. Pedro III. Veio o Terramoto. O Paço da Rainha ou Paço da Bemposta, como indistintamente era conhecido, sofreu bastante; a Capela, que era da invocação de Jesus Maria José, foi quási completamente arruinada. A Casa do Infantado, muito rica, reedificou o Paço com certa largueza, modificando:se sensivelmente a sua aparência. A Bemposta, abandonada, em certos períodos, já antes vinha reclamando obras.
Capela e Paço Real da Bemposta [1863] Largo do Paço da Rainha Gravura, in Archivo pittoresco |
Beneficiado o Paço, pôde vir habitá-lo D. Joáo VI, quando regressou do Brasil (1821). Foi aqui que se desenrolou parte das cenas da famosa «Abrilada», em 30 de Abril de 1824, conjura à frente da qual se colocou o irrequieto Infante D. Miguel, e que se malogrou pela intervenção do corpo diplomático, animado pelo embaixador de Luiz XVIII, o Barão Hyde de Neuville.
(Neuville foi distinguido, logo quinze dias depois, com o título de Conde da Bemposta; um sobrinho de Neuville, que serviu D. Pedro IV nas lutas liberais e casou com uma dama portuguesa, da Casa Subserra, foi, depois, por D. María II, feito Marquês da Bemposta, e o título perdurou em três vidas, extinguindo-se na Casa Rio Maior).
Depois de D. João VI viveram aqui D. Miguel (1828) e D. Pedro IV (1833). Em 1834 a Casa do Infantado foi abolida, e a Bemposta passou para a Corôa, rras D. Maria II apressou-se a doá-la ao Estado, quere dizer: à Nação.
Eis porque eu te dizia que por ter comprado e feito, a Bemposta, andou bem a rainha D. Catarina de Bragança. Os ermos povoararn-se, o sítio animou-se, e a Nação ficou com mais um palácio útil.
Capela e Paço Real da Bemposta [c. 1910] Largo do Paço da Rainha, 31 Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente |
Não podíamos, Dilecto, fugir a esta divagação, e pena tenho eu — de que tu talvez comparticipes — de não te poder resumir certas cenas da «Abrilada» descritas para França pelo próprio Embaixador Barão de Neuville em relatórios ao seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, que era, nem mais nem menos, o grande escritor René de Chateaubriand, e pela Embaixatriz, Maria Roger de Neuville, num diário íntimo. Mas dêsses papéis se apura, e eis o que nos interessa, que êste sítio há cem anos era descampado e, de noite, «lúgubre e medonho».
Ele — o Paço — era a testa coroada de Sant'Ana toda. Perto, campo de ciganos, a Carreira dos Cavalos, o solar dos Mitelos de Meneses, nascidos em Santo Estêvão de Alfama.
Hoje — e desde 1851, por mercê de D. Maria II — é a Escola do Exército [actual Academia Militar]. A frontaria, de linhas aristocráticas da arquitectura de setecentos — eis tudo. Tudo e a Bemposta, a mais linda designação de Lisboa de há duzentos anos.
E fez o Paço Real da Bemposta [risco do arq.º João Antunes], um dos mais lindos espaldares arquitectónicos de Lisboa.
É vê-lo no seu alçado setecentista, recomposto depois
do Terramoto [arq. Manuel Caetano de Sousa]. Na sua varanda nobre, no seu pórtico de capela real, no
seu duplo escadório decorativo , cortinado de acrotérios.
É senti-lo na evocação opulenta da Casa do Infantado, nas sombras do Infante D . Francisco, de D. João VI, do irrequieto Infante D. Miguel, que chegou a ser por algumas horas dono de Lisboa, mas que não sabia bem o que queria.
No interior a Capela organiza-se dentro de um rectângulo de ângulos arredondados, a nave, com seis capelas laterais, constituindo a do Santíssimo Sacramento [vd. foto abaixo (dir)], pela sua profundidade, uma unidade espacial autónoma, à qual se justapõe a capela-mor. O programa decorativo é inspirado na obra prima do barroco joanino, a Capela de S. João Baptista, da Igreja de S. Roque, mas atribuindo-lhe já um certo gosto rococó tardio, que se abre a manifestações neoclássicas. Merecem, ainda, destaque as pinturas em «trompe l'oeil» de Pedro Alexandrino de Carvalho e a tela do altar-mor, figurando a padroeira (N. S. da Conceição, vd. foto abaixo à esq), atribuída ao pintor italiano José Troni, sob a qual foi colocado um friso de retratos de elementos da família real.
Capela do Paço Real da Bemposta, nave, capela e altar-mor (esq) e Capela do Santíssimo, retábulo [1790-95] (dir) [c. 1962] Paço da Rainha Robert Chester Smith, in Lisboa de Antigamente |
Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. IV, pp. 47-48, 1938.
id., Legendas de Lisboa, p. 87, 1943.
Archivo pittoresco: semanario illustrado - Vol. 6, 1863.
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