Wednesday, 18 July 2018

Café Martinho

Depois diante do Martinho, fallou em irem tomar neve [nome que se dava ao gelo em rama, sorvete]; mas D. Felicidade receava a frialdade, Luiza tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.

Eça de Queiroz (1845-1900) O Primo Basílio, 1878.


De mais marcante no local, — recorda-nos Norberto de Araújo — e com saborosas tradições políticas e literárias, ai temos o Café Martinho, fundado por Martinho Bartholomeu Rodrigues em 1846, transformado já no actual século [XX], e que foi objecto de uma consagração evocativa na noite de 26 de Dezembro de 1936 pelo grupo «Amigos de Lisboa».

A fama do Café Martinho excedeu todas as expectativas anteriores à sua celebrada inauguração. Mas o certo é que contava já, à partida, com um fundador célebre na praça de Lisboa: Martinho Bartolomeu Rodrigues, proprietário — pelo menos desde 1829 — do Café da Arcada e contratador oficial da neve que se vendia na cidade. Presumir-se-ia que os gelados do Martinho viriam a ser — como de facto foram — cobiçados por Lisboa inteira.
(Marina Tavares Dias, Os cafés de Lisboa, 1999)

Café Martinho, a fachada inicial tal como Eça de Queiroz a conheceu [1909]
Quer você vir tomar o seu chá ao Martinho? — É a melhor torrada de Lisboa. [Eça de Queiroz, A Relíquia]
Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões

 Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

O Largo [antigo de Camões hoje Praça D. João da Câmara] que separa a Estação do Rossio do teatro ex-D. Maria, ex-Nacional, hoje Garrett, deveria chamar-se, se houvesse justiça nos nomes das ruas e praças, Largo dos Cafés. Tem nas suas margens os dois maiores cafés de Lisboa, o Suisso e o Martinho. Defronte tem outro pequeno: o da Gare, que, coitado, já está todo amachucado. Também quem se lembra de pôr um prédio daquele tamanho em cima dum café tão pequenino!

(André Brun (1881-1926), A Baixa às 4 da tarde, 1910)


Café Martinho, a entrada de ferro e vidro, após o restauro [ca. 1910]
Ainda me lembro que há dois anos o café Martinho foi respeitosamente de chapéu na mão pedir ao senado lisbonense licença para colocar algumas cadeiras e umas modestas mesas em face das suas portas, no grande largo deserto que lhe fica defronte.
O senado rejeitou o pedido, vendo nas ambições do café Martinho um perigo para o trânsito público.
[Guilherme de Azevedo, Crónicas de Paris: 1880-1882]

Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões
Alberto Carlos Lima,
in Lisboa de Antigamente
Café Martinho, a entrada de ferro e vidro, após o restauro [1909]
Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões
Joshua Benoliel,
in Lisboa de Antigamente
Café Martinho, após o restauro [1909]
Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões
No Martinho, já silencioso, o gás ia adormecendo entre os espelhos baços; e havia apenas numa mesa do fundo um moço triste, com a cabeça enterrada entre os punhos, diante de um capilé. [Eça de Queiroz, A Relíquia]
 Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Foi o café mais importante de Lisboa e, como tal, aparece referido por vários autores ao longo da sua existência, como se pode constatar em alguns excertos que aqui publicamos. Nele se reuniram gerações de intelectuais. O Café Martinho era famoso pelas suas deliciosas confecções culinárias, pelas torradinhas de Meleças, pelo chá verde com limão e pela neve, a par das desinteligências políticas e literárias que nele ocorreram. Foi palco logo no ano seguinte da peleja entre o batalhão Académico e os Batalhões do Algarve e da Carta, vendo esvoaçar pelo ar copos, chávenas, garrafas, pratos, açucareiros, bandejas, espelhos, tampos de mármore e bancos, desacato este que só findou com a intervenção da cavalaria municipal. Tal ocorrência justificou-se pelo facto de o filho do proprietário pertencer à quarta companhia do Batalhão Académico. Augusto Zeferino Rodrigues cursou direito.

Café Martinho, a sala de café e galeria da sobreloja onde ficava o restaurante [1909]
Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões

 Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

 

Foi no café Martinho — unico, n'essa epocha, que as senhoras atravessavam até à sala interior, para tomarem neve n'uma estufa!
Bulhão Pato (1829-1912), Memórias II [c. 1854]


Sucedeu a seu pai como proprietário do Café Martinho da Arcada e do Café Martinho do antigo Largo Camões. Este café tinha uma ampla sala com arcarias, cujas colunas eram revestidas com espelhos de Veneza. As mesas eram rectangulares com tampo em mármore branco. Os bancos do lado da parede eram de espaldar presos à parede. Ao fundo desta sala existia uma estreita e reservada sala de senhoras, onde as damas se deliciavam a saborear a famosa neve, ou seja, os sorvetes da época.
Personagens ilustres frequentavam este café. Alexandre Herculano ia lá sempre às quintas-feiras à tarde. Eça de Queiroz, Almeida Garrett, Bulhão Pato, o actor Tasso, o livreiro Zeferino Albuquerque, Pedro Lopes de Mendonça, Zacarias de Aça, Júlio de Castilho, Camilo Castelo Branco, Júlio César Machado, José Estêvão, Mendes Leal, Guerra Junqueiro entre tantos outros também figuram no leque da clientela assídua deste café. Célebres se tornaram também alguns dos seus criados, é o caso do Fagundo e do galego Valentim este último retratado inclusivamente em O António Maria, de Rafael Bordalo Pinheiro, graças ao seu enorme nariz.

Café Martinho, salão de restaurante na galeria da sobreloja [1909]
Ao fundo, um quarteto com piano de cauda animava almoços e jantares.
Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões

 Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Em 1909, o café foi remodelado. A antiga fachada foi substituída por uma entrada de ferro e vidro [vd. 2ª e 3ª fotos]. O interior do café decorado com arte-nova. A decoração e pinturas eram do artista João Vaz e as esculturas de Josef Füller. Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa aí se encontravam para rever as provas tipográficas dos livros do último e da própria revista Orpheu.
Entre 1950 e 1953, o Café Martinho foi transformado em cervejaria, pertencendo à data à Companhia de Cervejas Estrela. A sua clientela passou a ser a geração académica dos anos 50 e 60, e o seu petisco o bife especial. Em Maio de 1968 o café encerrou portas e em Outubro desse ano reabriu como dependência bancária do Banco do Alentejo. É actualmente uma dependência do Banco Português de Investimento.

Café Martinho [ant. 1968]
Praça D. João da Câmara. antigo Largo Camões

Estúdio Horácio Novais, in Lisboa de Antigamente

Na «sentença de partilhas» dos bens de Martinho Bartholomeu Rodrigues (falecido a 22 de Abril de 1881) — refere Marina T. Dias — figura uma dívida de 1.214 réis, contraída pela Casa Real em vários fornecimentos de neve. A relação dos bens do antigo neveiro prossegue, depois, ao longo de oito páginas, indicando valores tão díspares como acções e obrigações, jóias  e peças de ouro, propriedades urbanas e terrenos agrícolas. [...] Um pormenor, contudo, atesta o verdadeiro luxo praticado no serviço dos dois cafés: o valor dos talheres e outros utensílios de prata (que serviam às mesas) que vem mencionado na relação dos bens. 422..618 réis valiam as pratas do Martinho da Arcada e ainda mais — 467.684 — as do Martinho do antigo Largo Camões [uma verdadeira fortuna para aquela época].
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Bibliografia
QUEIROZ, Eça de, O Primo Basílio, 1878.
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p. 84, 1939.
DIAS, Marina Tavares, Os cafés de Lisboa, 1999.
AMIGOS DE LISBOA, Evocação do Café Martinho, 1936.
SUCENA, Eduardo, «Cafés» in SANTANA, Francisco e SUCENA, Eduardo, 1994.

3 comments:

  1. Para além da excelente narrativa, destaco as fotografias:são como o "ressuscitar da vida"....muito bom.

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  2. Mas tudo a desaparecer, a desvanecer, a transformar-se no irreconhecível. Que pena!

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  3. foram tantas as vezes que ali joguei bilhar, saudades.

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