Tuesday 20 October 2015

Casa Jerónimo Martins

Começando por uma simples tenda, à antiga portuguesa, que Jerónimo Martins, um moço cheio de esperanças, natural da Galiza, fundara em 1792, na antiga Rua de S. Francisco [actual Rua Ivens], uns anos depois, por volta de 1800, já estava em pleno Chiado, mas só na posse de uma porta, o número 19.


Beldemónio, pseudónimo de Eduardo Lobo Correia de Barros (1857—1893), quando escreveu as suas Viagens no Chiado, viu assim esta casa de Jerónimo Martins
lá dentro, eternizando-se em profundezas de doka londrina, um amontoamento extraordinário de tudo que a civilização requintada d'este fim de século tem inventado para fazer da mesa de jantar um  altar ao estômago: são as latas de trufas do Périgord, uma honra póstuma para os perus que sabem morrer com dignidade; as terrinas de foie-gras, obtido com fígados de pombas assassinadas pelo estiolamento em columbários impenetráveis à luz, e que da crueldade com que foi feito se vinga, irritando ou produzindo a gota; os rolos de queijos em altas colunas, desde o Gruyère até ao Brie, passando pelo Stilton, que tem um sabor aromático de avelãs, até ao precioso Roquefort, picante e cortado de laivos esverdinhados, aristocrático na sua argêntea capa de estanho reluzem; os montículos de conservas, peixe e carne, os salmões do Reno e o terrível Caviar da Rússia;  suspensos do tecto, renques de presuntos de York, embrulhados nos seus sacos de lona; pelas estantes, os grandes vinhos de toda a Europa, desde o Bordeaux espumoso como cerveja até ao Johannisberg caro como uma jóia, desde o velho e autêntico Porto de 1815 até ao mais antigo Chateau-Laffite de que rezam as crónicas das adegas de França, desde o Colares, fresco como uma colheita de orvalho, até ao Magyarather branco da Hungria, com que os voivodes opulentos das margens do Danúbio, do belo Danúbio azul cantado por Strauss, alegram os festins dos castelos por onde passou o estandarte de Kossuth; e ao fundo, finalmente, como a apoteose daquele mundo de vitualhas, o castelo formidável das grandes caixas de biscoitos ingleses, rectangulares, sólidas como o próprio Banco de Inglaterra, soberbas do seu ventre que poderia matar a fome a toda uma cidade cercada.==

Uma configuração da primitiva fachada da tenda do Jerónimo Martins na Rua Garrett, 19
in Lisboa Desaparecida, Marina Tavares Dias
Casa Jerónimo Martins [c. 1900]
Rua Garrett, 13-23
Os números 21 e 23 (e o 1.* andar, que tinha entrada pelo 17), ainda em 1911 pertenciam à Casa de Modas de António Soares de Castro, que antes adoptara a firma António Soares de Castro & Almeida (fornecedores das rainhas D. Maria Pia e D. Amélia), sucessores do atelier de M.me Aline, já aqui instalada em 1849, e que firmou os seus bons dotes de modista de fama, vangloriando-se de servir a primeira das soberanas acima relembradas.
Joshua Benoliel, in AML

Em 1906, já com a «Medalha de Ouro de Paris» (1900) e o «Diploma de honra da exposição de Pomologia de Lisboa» (1900), o Martins do Chiado, na publicidade que mandava para os jornais, dava como referências:
Números 13 e 15Armazém de víveres
Números 17 e 19 — Loja de chá 
e assim detalhava o negócio, em que muito prosperava:
 
Loja de chá, café e biscoitos
Grande sortimento em crepon, grenadine e lantejoulas
Louça inglesa e do Japão e vários outros produtos

Casa Jerónimo Martins & Filho, publicidade em 1897 e 1900
D. Fernando, o viúvo de D. Maria II e regente do Reino na menoridade de Pedro V, concede a Jerónimo Martins o alvará de fornecedor da Casa Real, porque "há por bem e lhe apraz". Jerónimo Martins não sobreviverá para receber esta honraria, que seria concedida a seu filho Domingos.

 
Como acabámos de ver, a tenda do Martins, que logo no princípio desta resenha dissemos ter começado pelo número 19 da Rua Garrett, que fora tomado à viúva do marceneiro Isidoro José, já no tempo presente tinha igualmente em sua posse os números 13, 15 e 17, que haviam pertencido ao napolitano Del Cuoco, que negociava em caixas e bandejas de verniz; ao espanhol Jerónimo Francisco Molina, vendedor de ferragens, tapetes, galões e quinquilharias, e à firma Oliveira & C.ª, que expunha lindos chapéus para senhoras e crianças. 
A Casa Jerónimo Martins foi fornecedora da Casa Real, que a autorizou a fazer uso dessa distinção, por Alvará de 22 de Março de 1858. E, sendo abastecedora das principais casas fidalgas e dos melhores revendedores, Alexandre Herculano concedeu a esse estabelecimento, em 1878, o exclusivo da venda do seu azeite da quinta de Vale de Lobos .

Casa Jerónimo Martins [c. 1910]
Rua Garrett, 13-23
Joshua Benoliel, in AML
Casa Jerónimo Martins [1966]
Rua Garrett, 13-23
Na altura do 1.º andar, nota-se uma lápida em que está gravada a lembrança de que aí morou e morreu, em 1804, o almirante da esquadra brasileira Francisco Manuel Barroso da Silva, herói da batalha de Rianchuelo.
Garcia Nunes, in AML
 
Com toda esta importância, guindada alto como centro abastecedor de víveres, estabelecida numa rua que era alvo de grandes atenções, a Casa Jerónimo Martins, que andava na boca de toda a gente, tinha que ser beliscada com uma piada certeira, em que são mestres os alfacinhas. E sem olhar a proporções, o autor anónimo — são sempre anónimos os criadores de blagues — disparou esta graça, que logo entrou em grande circulação: « Há, na cidade, dois monumentos que se parecem no nome: o monumento que fala ao espírito, os Jerónimos, de Belém, e o que fala ao corpo, o Jerónimo do Chiado.»
 
Casa Jerónimo Martins & Filho [c. 1910]
Rua Garrett, 13-23
Estúdio Mário Novais, in Biblioteca de Arte da F..C.G.
Casa Jerónimo Martins & Filho [1937]
Rua Garrett, 13-23
Salazar Diniz, in Biblioteca de Arte da F..C.G.

Bibliografia
Eduardo de Barros Lobo (Beldemónio), Viagens no Chiado, 1897.
COSTA, Mário, O Chiado pitoresco e elegante, p. 280-285, 1987.

1 comment:

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