Sunday 29 October 2017

Festas de Aviação no Hipódromo de Belém

Em 1833, Belém integra-se na cidade como freguesia autónoma. Na segunda metade do século XIX com o início da revolução industrial e a fixação de unidades industriais em toda a zona ribeirinha de Alcântara a Pedrouços, surgem em Belém as fábricas de velas e sabão, de curtumes e de cordoaria, de estamparia e tinturaria, de fiação e tecidos, de produtos alimentares e de produtos farmacêuticos e, desde 1891, uma fábrica de gás localizada junto ao Baluarte de São Vicente, vulgo Torre de Belém.


Estamos em Outubro de 1909. No hipódromo, já há alguns anos desactivado das suas funções e, agora, «mais ou menos convenientemente adaptado» a campo de aviação, um importante acontecimento acaba de ocorrer: «Lisboa teve finalmente ocasião de assistir já a uma experiência de aviação», cujo resultado não foi, porém, «completamente satisfatório, em consequencia do desastre que a interrompeu (...): quando o aviador sr. Armand Zipfel tentou fazer uma viragem, o apparelho caiu bruscamente e sofreu com a queda alguns prejuizos materiaes [vd. 3ª imagem]» ¹

Hipódromo de Belém |1910|
O Blériot monoplano de Julien Mamet sobe 120 metros acima do então descampado de Belém, paira sobre o Tejo e regressa em perfeita aterragem; ao fundo vêem-se os gasómetros da Fábrica de Gás de Belém
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

A Illustração Portuguesa e o seu repórter fotográfico Joshua Benoliel estavam lá, deixando-nos o registo destes dois importantes acontecimentos. Nestes terrenos do hipódromo — cujo início data de 1874, tendo-se realizado as últimas corridas em 1893 — efectuavam-se, para além das corridas de cavalos e das demonstrações aeronáuticas, toda uma série de eventos de carácter social, entre os quais as paradas e os exercícios militares.
No ano seguinte, a 27 de Abril, o piloto Mamet realizava então a proeza, descolando-se do hipódromo de Belém, sobrevoando o Tejo e regressando novamente ao hipódromo [vd. 2ª imagem].

Hipódromo de Belém |1910|
O Blériot monoplano de  Julien Mamet sobe 120 metros acima do então descampado de Belém, o que deixa Lisboa atónita.
Fotografia anónima

É, pois, Julien Mamet, que em Maio de 1910, demonstra a 10.000 cidadãos o «voo do mais pesado do que o ar».  Com um Blériot monoplano, sobe 120 metros acima do então descampado de Belém, paira sobre o Tejo e regressa em perfeita aterragem [vd. 2ª imagem]. O avião fica exposto numa garagem de Lisboa perante  um publico «embasbacado», segundo relatos da época.
Nos finais do ano de 1909 surgia o Aero Club Português e daí a pouco mais de dez anos «já estavam portugueses a voar e a preparar-se para a conquista das grandes distâncias do mundo», com os voos transatlânticos dos históricos Gago Coutinho e Sacadura Cabral, nos anos 20 do século passado.

Hipódromo de Belém |1909|
O biplano Voisin-Antoinette de 40 CV pilotado pelo aviador Zipfel eleva-se 8 metros ao longo de 180 metros antes de se despenhar; em último plano vislumbra-se a  Ermida de São Jerónimo.
Joshua Benoliel, iin Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ llustração Portugueza de 25 de Outubro de 1909.

Friday 27 October 2017

Cinema Tivoli

Pois — enfim! — retomemos a linha da Avenida.
Fazendo esquina para a Rua de Manuel de Jesus Coelho ergue-se o Tivoli, um dos melhores cinemas de Lisboa, inaugurado em 1924. (Arquitecto Raúl Lino, construtor F. Touzet).  
Antes do Tivoli ser construído funcionou na parte do edifício, hoje [1939] ocupado pelo Salão do Cinema, um «Teatro Novo», tentativa de renovação modernista da literatura teatral, e cujo êxito foi nulo — uma aventura da escola nova. ¹

Cinema Tivoli  [1928]
Avenida da Liberdade, 182-188; Rua Manuel de Jesus Coelho, 5-13
Fotógrafo não identificado, in Arquivo do jornal O Século

A inauguração — em 30 Novembro de 1924 — foi marcada pelo «super-film» de opereta «As Violetas Imperiais» com a famosa Rachel Meller — e, em 1927, um inquérito d'«O Século›» recolhia a opinião quase unânime dos leitores a favor da nova e luxuosa sala.Quando o Cinema Tivoli, situado a meio da Avenida da Liberdade, foi inaugurado, a comunidade cinematográfica lisboeta temeu o pior. Como poderia vingar um cinema de estreia tão grande e tão moderno, mas situado tão longe do centro da cidade e da vizinhança das outras salas de estreia, concentradas desde os anos 10 entre a Baixa e o Chiado? Os receios de inviabilidade económica eram tão grandes que as três distribuidoras então existentes resolveram durante algum tempo partilhar entre si os custos do aluguer de filmes ao Tivoli porque estavam certas do fracasso de uma sala situada tão longe do centro.

Cinema Tivoli  [1935]
Em cartaz, As pupilas do Sr. Reitor
in Arquivo do jornal O Século

(clicar para ampliar)
Mas passados alguns meses de excelente programação feita pelo próprio arquitecto do edifício, Raul Lino, o Tivoli destronava todos os outros cinemas e era consagrado pela crítica e pelo público como a sala mais cómoda e mais elegante de Lisboa e aquela onde passavam os melhores filmes europeus e americanos (ali estrearam «Os Nibelungos» de Fritz Lang, «O Último dos Homens» e «Aurora de Murnau», «A Sinfonia de uma Capital» de Ruttmann, «Nanook«de Flaherty, «A Quimera do Ouro» de Chaplin e muitos outros filmes de Wiene, Stiller, Sjöstrom, Dreyer, Lubitsch, de Mille, Feyder, L’Herbier, Epstein e von Stroheim).

No início dos anos 30, porém, os cinemas suscitaram o interesse de alguns arquitectos e alguns edifícios surgiram então como mais um terreno de experimentação modernista com fachadas cegas de betão e elementos decorativos «art-déco» em ferro e vidro, como o cinema Capitólio, obra fundadora do efémero modernismo arquitectónico português.

Pessoal do Cinema Tivoli [1933]
in Arquivo do jornal O Século
(clicar para ampliar)
Em Lisboa, o primeiro grande exemplo deste novo tipo de edifícios foi justamente o Tivoli, traçado por um reputado arquitecto e cujas dimensões, lotação e planta em gaveto à Avenida da Liberdade, lhe deram uma relevância urbanística até ali inédita naquele tipo de equipamento e percepcionada como tal, já à época, pelo menos na imprensa especializada. ²

«Planeada a sua construção em moldes genuinamente americanos e ingleses, o Tivoli, não sendo luxuoso, porque tais luxos são sempre supérfluos, abunda em fórmulas práticas. Conforto e decência. A sala é ampla, como amplos são os lugares, os corredores e escadarias. Para encurtar palavras diremos que nenhuma capital do mundo desdenharia de ter um cinema como o Tivoli, conquanto os haja de maiores dimensões, mas não mais confortáveis nem mais atraentes, pela sua impressionante sobriedade. Está-se bem no Tivoli, e estamos certos que todos concordam com a nossa opinião». ³

_________________
Bibliografia
¹  ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XIV, pp. 38-39, 1939.
² RIBEIRO, M. Félix , Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa, 1896-1939, pp.141-146-.
³ «Tivoli», s.a., Porto Cinematográfico, ano VI, n.º 5, Dezembro de 1924, p.27.

Wednesday 25 October 2017

Ermida do Senhor Jesus da Salvação e Paz e da Senhora das Dores

É uma ermidinha na calçada de Santa Anna junto ao muro das Religiosas Commendadeiras, a qual é administrada por uma confraria da Via-Sacra.¹


Quando tudo isto — Monte de Sant'Ana — era campos de encosta — recorda-nos Norberto Araújo —, primeiramente pertença de vários senhores, e, depois, cercas de conventos ou pedaços de quintas de casas nobres, dos Menezes, principalmente, — este arruamento, vertente natural, existia desenhado na Lisboa primitiva, de começo por caminho de pé posto, logo vereda, logo estrada, logo calçada, que acabou por receber a sua designação do orago do Convento freirático mais acima. A Calçada de Santa'Ana era estreita, como ainda hoje, até o sítio onde passava a muralha de D. Fernando, e daí para riba alargava em campos, que só no século XVII, começaram a receber revestimenta urbana de edifícios, numa ligeira ordenação municipal. [...]

Ermida do Senhor Jesus da Salvação e Paz |s.d. c. 1900|
Calçada de Sant'Ana
José A. Bárcia, in Lisboa de Antigamente

Ficava nesse sítio [encostada à torre N. da muralha fernandina] a Ermida do Senhor Jesus da Salvação e Paz, e da Senhora das Dôres, que, até há três anos [1935], ali existia, na sua pequenez e abandono. O Estado, a quem pertencia o terreno, vendeu os restos da Ermida, e levantou-se então o edifício que vês, encostado, justamente, ao «prédio «onde viveu Camões», o que faz esquina para o Bêco (escadinhas) de S. Luiz. ²

Ermida do Senhor Jesus da Salvação e Paz |s.d. c. 1900|
Calçada de Sant'Ana
José A. Bárcia, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ Mappa de Portugal antigo e moderno pelo Padre João Bautista de Castro (...) 3a ed. revista e accrescentada por Manoel Bernardes Branco, 1870.
² ARAUJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa», vol. IV, pp. 27-29.

Sunday 22 October 2017

Alameda (Convento) do Beato

Quanto à possível origem deste antigo topónimo, a justificação para tal é-nos dada por Norberto Araújo nas suas «Peregrinações» quando afirma que neste local existia no comêço do século XV uma Ermida de S. Bento, dos frades de Alcobaça. A Rainha D. Izabel, mulher de D. Afonso V adianta o mesmo autorpensou em erguer aqui um Convento, mas só depois da sua morte se realizou aquêle propósito, havendo o Rei viúvo adquirido aos frades de Alcobaça a Ermida, e levantado (1461) um pequeno Convento que entregou aos frades chamados Bons Homens de Vilar (de Frades), da Ordem de S. João Evangelista. A nova Igreja ficou-se chamando de S. Bento de Xabregas [vd. 2ª imagem], sem que os religiosos tivessem que ver com a Ordem dos benedictinos. Mais tarde o Padre António da Conceição, muito do Rei D. Sebastião, fêz erguer, sôbre o primitivo, um magestoso Convento e nova Igreja; os frades passaram a ser cónegos e o seu prelado gozava do título de Dom Reitor e de honras de bispo. António Conceição foi beatificado, e o Convento passou a chamar-se, como o sítio, do Beato António. O Terramoto não causou prejuizos ao Convento. 
 
Alameda do Beato [1934]
Antiga Alameda do Beato António; Rua do Beato
Fotógrafo não identificado, 
in Lisboa de Antigamente

Em 1834, extintas as Ordens, os frades saíram, e a Casa converteu-se em Hospital; ardeu quási totalmente pouco tempo depois [c. 1840]. (...) Foi então, cerca de 1844, que o industrial e comerciante João de Brito adquiriu tudo quanto restava do antigo Convento e Igreja, incluindo o claustro, principiando por montar um armazém de vinhos, (...) e, em 1849, obteve o alvará para fábrica de moagem [de cereais, futura Nacional] (...)
(ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XV, pp. 71-72, 1939)

Fábrica de Moagem do Beato [1921-12-28]
Antigo Convento de São João Evangelista de Xabregas
Rua do Beato, 40-48; Alameda do Beato, 35-42
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Em 1849, D. Maria II deu autorização para que o industrial João de Brito utilizasse a marca «Nacional» nos produtos da sua empresa; o espaço mantém-se ligado a este nome até hoje.
Nos últimos anos do século XX, o espaço do convento começou a ser utilizado para a organização de eventos de índole cultural e social. No entanto, um novo incêndio em 2004 provocou danos no antigo cenóbio; depois de realizadas obras de reabilitação pela empresa proprietária — a Cerealis —, o Convento do Beato foi reaberto ao público em 2005. [IGCP]

Convento do Beato António, fachada principal (ao fundo) [s.d.]
Alameda do Beato
Reza a história que Frei António da Conceição, com apenas 7 tostões que recebera de esmolas, conseguiu dar início à construção do esplendoroso Convento. Esta obra milagrosa veio aumentar a sua fama e em 1602 o povo eleva-o a santo (tendo sido reconhecido como tal pela Igreja apenas no séc. XVIII), passando a tratá-lo por Beato António e a sua magnífica obra como Convento do Beato. Cedo toda a freguesia onde fora edificado o Convento, passa a ser conhecida como freguesia do Beato.
Henrique Cayolla, in Lisboa de Antigamente

Friday 20 October 2017

Palacete Monte Real

Ora aqui temos, no n.º 29 39, à esquina da  Rua de São Domingos, este caprichoso e complexo Palacete do Conde de Monte Real. Não é possíver reunir mais elementos em menos espaço: claustros, pátio, capela, passadiço, painéis e silhares de azulejos, e uma torre, além da habitação com seus dois pavimentos. Dir-se-á a reconstituição teatral, em miniatura, com bons materiais e vistosa traça, de um exemplar da casa portuguesa, antiga, de bom senhorio e de bens de raíz. ¹


Palacete dos Condes de Monte Real [1932]
Rua de Buenos Aires, 39;
Rua de São Domingos à Lapa, 100; Travessa do Norte à Lapa, 3; Beco do Norte
Fotógrafo não identificado, 
in Lisboa de Antigamente

Palacete construído no início do séc. XX, a partir de 1900, por iniciativa de Artur Porto de Melo e Faro, conde de Monte Real, para sua residência e de sua esposa, D. Laura Cardoso Diogo da Silva. Projectado pelo arq. José Luís Monteiro, traduz um exemplar de arquitectura residencial, romântica (neo-barroca e neo-rococó), que apresenta planta em L articulada, do lado interno, com pátio e num dos seus extremos, com capela de planta longitudinal definida por nave e capela-mor, à qual surge adossada torre sineira. 
No interior, escadaria monumental e respectiva caixa surge como principal elemento de aparato, merecendo destaque o acervo de azulejar de diferentes períodos cronológicos e tipologias, as boiseries que animam tectos, guardas de escadas, vergas e aventais de janelas interiores, assim como a pintura mural de carácter vegetalista e floral miudinho das coberturas.² 

Palacete dos Condes de Monte Real claustros, pátio, capela [s.d.]
Rua de Buenos Aires, 39;
Rua de São Domingos à Lapa, 100; Travessa do Norte à Lapa, 3; Beco do Norte
Fotografia anónima (recente)
in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. VII, p. 50, 1938.
² cm.lisboa.pt.

Wednesday 18 October 2017

Chafariz da Bica do Sapato

No Burgo de Lisboa Oriental — lê-se na excelente Memoria que Velloso d'Andrade publicou em 1851 sobre os chafarizes e fontes da cidade — perto do Convento de Santa Apolónia, está a fonte da bica do Çapato, de cuja agoa ha opinião no povo de que serve para intemperanças quentes, e para curar achaques cutâneos, a que chamão do fígado; e assim também para as queyxas da ourina, dysuria, estranguria; e finalmente para todos os males que procedem de calor. No que nos pareceo dizer: que os que padecerem semelhantes queyxas, e os que forem de temperamento quente, ainda que tenhâo boa saúde, farão muyto bem se beberem desta agoa: não tanto pela particular virtude, que nella considerao, como por que se beberem da agoa do Chafariz da praya, ou d'el-Rey, de que usa a mayor parte destas Cidades, se poderão offender com ellas, por serem sulphureas, e não temperarem com as agoas puras, qual he a da bica do Çapato, a do chafariz de Arroyos, a da Fontainha, e da Pimenteyra, que são agoas puras, e boas, que ha nesta terra, de que devem usar os que padecerem queyxas de calor, acrimonias, e intemperança.

Rua da Bica do Sapato  [1939]
Local da antiga fonte da bica do Sapato; chafariz
Eduardo Portugal, in AML

Para a banda da terra —  no dizer do ilustre Júlio de Castilho — era a chamada Bica do Sapato, hoje [em 1893] chafariz n.° 21. Tem por cima das bicas uma esculptura velha representando o navio das armas de Lisboa [vd. gravura], e por baixo, na moldura de pedra, a data de 1674. Fica este chafariz uns 2 metros inferior ao nivel da calçada, resguardado dentro de um rebaixamento com sua cortina de pedra e cal sobre a serventia publica. Foi concertado em 1853 . D’esta fonte, visivelmente reformada no anno de 1674, dizia, uns cincoenta annos antes, o citado poetastro [mau poeta]¹ descriptivo em 1621:
Logo a Bica do Sapato
se segue n’uma horta fresca,
cujas crystallinas aguas
competem co’a Pimenteira.

É logar mui deleitoso,
que muita gente frequenta,
onde em logar aprazível
á vista do mar passeia.
Em 1851, o chafariz n.º 21, tinha duas bicas, duas companhias de aguadeiros, dois capatazes e cabos, sessenta e seis aguadeiros e um ligeiro

¹N.B. autor da Relação métrica descriptiva da Cidade de Lisboa, 1626. Relação em que se faz uma breve descrição dos arredores mais chegados á Cidade de Lisboa

Chafariz da rua da Bica do Sapato em 1821
Rua da Bica do Sapato
Desenho da autoria de Luís Gonzaga Pereira, in AML

Bibliografia
ANDRADE, José Sérgio Velloso de, Memoria sobre chafarizes, bicas, fontes, e poços públicos de Lisboa, 1851
 CASTILHO, Júlio de, A Ribeira de Lisboa, p. 119, 1893

Sunday 15 October 2017

Arco Triunfal da Rua Augusta

O arco triunfal, que dá entrada para a cidade, só terminado em 1873, ressente-se do adiantado da época em que foi rematado. A parte superior, carregada de ornatos, já não corresponde à nobre simplicidade da parte antiga, mas ainda assim não conseguiu desmanchar o conjunto, tam soberanamente belo e nobre êle é. ¹


Chamamos a atenção dos nossos leitores para o artigo que se segue publicado na revista A illustração, em 1887, onde se descreve pormenorizadamente o historial atribulado deste magnifico monumento nacional desde a sua concepção — no remoto ano de 1775 até ao dia da sua inauguração, em 1873, mais de um século depois. Reza assim:

Este arco monumental vulgarmente chamado Arco da rua Augusta, fica no centro da fachada septentrional da Praça do Commercio, e é uma das mais notaveis curiosidades architectonicas de Lisbôa. [...]
Então [em 1843] o governo ordenou que os architectos em serviço na intendência das obras publicas apresentassem cada um seu projecto. [...] foi finalmente approvado e mandado realizar  o do architecto Veríssimo José da Costa. Ê força confessar que este ultimo plano revela bem mau gosto; e que, se elle ainda assim sobrelevou, como é de suppôr, os anteriormente apresentados, isso é mais um documento de quão baixo tinham arrastado entre nós a Arte o dominio fradesco e o jugo hespanhol.
Na verdade, se o facies architectonico do arco, desde a base até ao fecho (risco primitivo), é d'uma correcção e elegancia de linhas admiravel, do fecho para cima, é horrorosamente pesado e trivial aquelle enorme cubasamento d'onde o escudo nacional emerge, amarfanhado por uma inextricavel vegetação das epocas primitivas.

Arco Triunfal da Rua Augusta, em construção [ant. 1873]
Monumento a D. José I 
Fotógrafo não identificado,in Lisboa de Antigamente

Em 1850, continuava a obra devagar, e como por demais, apezar das sommas que annualmente consumia. As obras do arco da rua Augusta emparelhavam já com as de Santa Engracia, na lenda dos impossiveis nacionaes. Lia-se no Panorama d'esse tempo: «O arco da rua Augusta ha de ser, estamos d'isso convencido, um monumento de seculos. Cada geração ha de trazer uma pedra, acrescentar um festão, bordar um lavor, juntar uma estatua, rendilhar uns cinzelados, prolongar um enlablamenlo, tecer uma nova grinalda. Enquanto existir Portugal há-de estar em via de construção o Arco da rua Augusta.» 
Felizmente não foi verdade. O espirito nacional despertou enfim, e o governo decretou a maxima celeridade na conclusão da obra. [Célestin Anatole] Calmels ajustou por 11:200$000 réis a execução do grupo que encima o terraço, e Victor Bastos por 9:000$000 réis as seis figuras que ornam o entablamento.

A Rua Augusta em meados do séc. XIX, vendo-se já as colunatas compósitas do arco triunfal colocadas em 1815
 Nesta curiosa estampa, que dá o enfiamento pombalino puro da artéria central da Baixa antes de ser construido o remate do Arco Triunfal, surpreendem-se os costumes doromantismo lisboeta, numa pitoresca fisionomia local. Observem-se os candeeiros de cegonha suspensos das colunas do monumento, as sejes (transição da traquitana) e a indicação, dada pela trazeira de um carro, de que as arcadas estavam abertas aos veículos. Como se ve, o aspecto exterior dos prédios da Rua Augusta não se modificou sensivelmente- ³
Colecção J. Bárcía

Arco Triunfal da Rua Augusta em construção [c. 1862]
Václav (Wenceslau) Cifka, in Lisboa de Antigamente


Os dois insignes estatuarios trabalharam com promptidão. No dia 25 d'Abril de 1873 ficava completo o assentamento das estatuas; no dia seguinte, ao meio dia, os operarios do partido do arco iam na companhia dos seus chefes, á Conceição Velha ouvir uma missa em acção de graças por se haver concluido a obra, sem um sinistro; seguiu-se á missa um Te Deum, mandado celebrar pela irmandade da egreja; e, no dia 29, era o arco desvendado de todo ao publico, modestamente, sem a minima pompa oficial.
Não era sem tempo.

Arco da Rua Augusta
em construção [c. 1862]
(clicar para ampliar)
Václav (Wenceslau) Cifka
Repetimos, — o conjuncto do arco é desgracioso e pesado, porque a monstruosidade do entablamento superior como que esmaga a fina elegancia das columnas. Admitia-se este entablamento, era mesmo necessario, mas n'outra relação de dimensões com as columnas e pilastras  em que o arco assenta: metade da altura d'ellas. dois terços, quando muito. Mas assim, de comprimento egual, senão superior, prejudica notavelmente a harmonia do conjuncto. É verdade que as seis columnas jonicas, salientes, sustentam apenas as estatuas; porêm, visto o arco de frente, parece que supportam o peso de todo o entablamento superior, e não podem com elle.
O trabalho de canteiro, no escudo nacional e vegetações que o cércam, é primoroso.
Magnífico deveras é o grupo superior do arco, devido ao cinzel de Calmeis e digno do mais vivo applauso. Representa a Gloria coroando o Génio e o Valor. Ahi ha tudo a admirar. A Gloria, de pé, n'uma soberba attitude, entre graciosa e solemne, tem á sua direita o Valor (a força), encarnado numa esplendide figura de mulher, de capacete e adaga romana, descançando a mão direita n'uma bella cabeça de leão; á esquerda o Genio, apoiado a uma lyra, abrigando nas amplas azas uma pequena figura symbolica.

Arco da Rua Augusta [Início séc.  XX]
Observe-se o grupo escultórico sobre o 
arco de volta perfeita
(clicar para ampliar)
Fotógrafo não identificado, in LA
Cada uma das figuras manifesta claramente a ideia do esculptor; e, se a concepção artistica se deixou subordinar um pouco aos preceitos do classicismo, a execução é admiravel e absolve e annulla os defeitos do resto do monumento. Na Gloria, o modelado dos braços é perfeitissimo; o lançado e o pregado do manto é bello, fino, flagrante. Em tudo o mais ha uma grandiosidade simples de linhas, e ao mesmo tempo um grande escrupulo de acabamento, que concorrem para a harmonia geral do grupo; que lhe dão a flexibilidade, a delicadeza, o pormenor miúdo, e ao mesmo tempo a distribuição harmonica do conjuncto em grandes massas, tornando-o um dos melhores grupos ornamentaes da Europa e talvêz o mais monumental.
As estatuas de Victor Bastos representam, da esquerda para a direita: o Tejo, Viriato, Vasco da Gama, Marque; de Pombal, Nuno Alvares Pereira, e o Douro.
Sáo excelientes e fazem honra ao illustre estatuario ido monumento a Camões. Sobretudo a  estatua de Vasco da Gama e a cabeça do Tejo são duas peças d'estudo muito notaveis, que fazem honra ao cinzel nacional.
No plintho do grupo central avulta em bronze doirado este distico [em latim], de facil interpretação:

VIRTVI BVS
MAJORVM
VT. SIT. OMNIBVS. DOCVMENTO. P. P. D.

[Ou seja, em língua portuguesa:
Às Virtudes dos (nossos) Maiores,
para que sirva a todos de ensinamento.
(Monumento) Dedicado a expensas públicas]
N.B. Interrompemos aqui a narrativa do cronista para acrescentar uma nota cómica a propósito das siglas «P.P.D.» (Pecunia Publica Dicatum=Dedicado a Expensas Públicas). que se observam no final inscrição latina O povo, que tudo explica, mas à sua maneira, tinha uma interpretação para as siglas P.P.D.: «Pra passar debaixo». Quem se ria de tal explicação, não conseguia, contudo, apresentar, em geral, outra melhor. 

Na grande caixa de embasamento do arco [Sala do Relógio]prossegue o artigo — está alojado o mechanismo d'um relogio, que tem o mostrador para a rua Augusta
O arco em questão é uma obra d'arte notável; e em dias quentes de sol, impressiona sempre o viajante, que chega por mar, o branco doirado d'aquelle mármore cortando harmoniosamente, n'um sorriso de triumpho, o azul do nosso céu immaculado. ²

Arco Triunfal da Rua Augusta [190-]
Observe-se o relógio virado à Rua [da] Augusta [Figura do Rei]; monumento a D. José I; nesta época os carros eléctricos ainda circulavam no sentido Sul→Norte
António Novais, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ MATOS SEQUEIRA, Gustavo de  (1880-1962) Lisboa, 1920
² A illustração: revista quinzenal para Portugal e Brasil, dir. Mariano Pina, 1887

Friday 13 October 2017

Lojas de antanho: Alfaiataria Piccadilly no prédio do Marrare

O chamado prédio do Marrare, que hoje tem os números 54 a 64 [de que já aqui falámos], é um dos imóveis de maior destaque deste burgo. Compõe-se de lojas, quatro andares e águas-furtadas, com as modeladas grades que se tornam salientes das suas varandas, seis em cada um dos principais pisos. 
Numa evolução cadenciada pelo tempo, várias modalidades de negócio seguiram, sucessivamente, no encalço do celebérrimo café, com os números de porta 58 e 60, que dera por findas as suas inolvidáveis proezas. 
Logo em 1866, e como primeira transformação, sobreveio a Sapataria Lourenço, do apurado mestre Manuel Lourenço, citado por Eça, no Primo Basílio.
Numa completa cambiante, um dia acabou o calçado afiambrado, e a varinha mágica transformou tudo na elegante Chapelaria Araújo, que em 1884 marcava pontos, pertencendo já a Augusto Ribeiro & C.ª. Ainda passou para outro negociante, de nome Miguel de Lacerda, e, em 1912, nova metamorfose se verificou, com a entrada da Alfaiataria Piccadilly, notável pela forma de vestir. 

Alfaiataria Piccadilly |c. 1912|
Rua Garrett, 58-60; prédio do célebre café Marrare do Polimento. Entre 1925 e 1963 funcionou aqui o Café Chiado.
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Em Junho de 1913, teve lugar a «semana das bengalas Piccadilly» — e por esta nota se deduz como estava enraizado o uso de tais bastões, exposição em que estiveram patentes, aos olhos dos elegantes, mais de dois mil exemplares. No mesmo ano, outra exposição teve lugar, figurando os melhores quadros do apreciado pintor João Vaz. O estabelecimento, em 1918, transitou para defronte (números 69 e 71), por os seus proprietários haverem cedido a casa a um destacado grupo de intelectuais, simultaneamente capitalistas, que montaram aí a bem lembrada Livraria Portugal-Brasil, em nome da Sociedade Editora com igual denominação, constituída por escritura de 11 de Dezembro de 1918, compradora do valor social da antiga Livraria Ferreira, da Rua do Ouro, 132 a 138, que sucedera à firma Pacheco & Carmo.¹
Encerrou portas em 2011, substituída por uma loja de uma cadeia de sanduíches.
 
Prédio do célebre café Marrare do Polimento |1965-03|
Rua Garrett, 58-60Alfaiataria Piccadilly (a seguir ao 2º toldo). Entre 1925 e 1963 funcionou aqui o Café Chiado.
Armando Serôdio, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ COSTA, Mário, O Chiado pitoresco e elegante: história, figuras, usos e costumes, pp. 137-147, 1987.

Wednesday 11 October 2017

Rua da Caridade

As Ruas da Caridade, — recorda-nos o olisipografo Norberto de Araújo — do Carrião e da Fé pertencem a S. José velho; morrem na pitoresca Rua do Passadiço, cortando a ressonante Rua do Cardal de S. José.¹


A Rua da Caridade, na Freguesia de São José, foi fixada na memória da cidade em data que se desconhece. No entanto, deverá este topónimo ser anterior ao terramoto de 1755 já que nos registos paroquiais anteriores a este evento o vemos referido como «rua da Charide», assim como posteriormente já com a grafia de Rua da Caridade. Também o olisipógrafo Luís Pastor de Macedo («Lisboa de Lés a Lés», vol. II) refere que «Além da Rua da Caridade que ainda existe na freguesia de S. José, e onde morreu em 1775 o grande pintor Pedro Alexandrino de Carvalho, houve o Alto da Caridade, parte do Campo de Santana, onde depois se construiu a praça de touros (...)».

Rua da Caridade [1944]
Vista tomada da Rua de  São José
Fernando Martinez Pozal, in AML

Pode colocar-se a hipótese de a origem advir dos irmãos da Caridade que se fixaram em alguns locais de Lisboa mas pode ter outras raízes se pensarmos no facto de nesta freguesia de S. José, para além da Rua da Caridade existir também a Rua da Fé e a Rua da Esperança do Cardal. Finalmente, sabe-se que por deliberação da CML de 07/08/1884, o Beco do Tem-Tem, situado entre a Rua de S. José e a Rua do Cardal, passou a estar integrado na Rua da Caridade por ser o prolongamento desta via pública e que esta passou desde aí a ter começo na Rua Passadiço e estender-se até à Rua de S. José.²

Rua da Caridade [1907]
Ao Rua do Cardal de S. José
Machado & Souza, in AML

Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XIV, p. 93
² cm-lisboa.pt

Sunday 8 October 2017

Lisboa Vista do Cimo dos Montes

Poucas vezes no mundo verá o viajante, como em Lisboa, tanta magnificencia de espectaculos naturaes, e tamanha variedade de scenario! (...)

Temos ahi uma vista tomada da beira da esplanada sudoeste do castello de S. Jorge, e inundada do nosso formosíssimo sol peninsular. Que vasto quadro! (...) 

Basta um quadro assim, para justificar os enthusiasmos insuspeitos, com que os estrangeiros saudaram sempre a nossa capital.


«Parece-me extraordinário — escrevia em 1826 um viajante inglez — como se póde contemplar a magestade do Tejo, desde as janellas da hospedaria de Reeve, sem ficar assombrado com a magnificencia de tal quadro!» 
E vinte annos andados, exclamava Hughes:
«Lindissima se ostenta a formosa capital, como um amontoado de palacios de marmore levantado na orla d'aquelle glorioso rio! Só depois de um conhecimento intimo do interior da cidade é que a illusão se dissipa.» Se hoje voltasse o auctor a percorrer Lisboa, limpa, banhada de agua, enfeitada de jardins, cortada de avenidas, e melhorada em todo o genero de viaçao, veria todo o caminho andado na estrada do progresso material. ¹

Vista parcial de Lisboa tirada do Castelo S. Jorge  [c. 1870]
Panorâmica de Lisboa tirada da Sra do Monte
Observe-se, ao centro, o Arco Triunfal da Rua Augusta ainda por rematar. O coroamento, composto pelo grupo escultórico alegórico "A Glória coroando o Génio e o Valor" só ficou concluído em 1875.
Francesco Rocchini (1822-1895), in BNP

[...] situação única desse morro mirando o deslumbrante estuário do Tejo, a sumptuosidade do ar, a diafaneidade do céu e dos contemplativos montes da outra margem. 
Fialho de Almeida (1857-1911), «Lisboa Monumental», Barbear, Pentear [1910]

Sentado num capachinho, agarrado às grades da estreita sacada pombalina, mudo e fascinado, o menino olha os telhados de veludo, o céu sereno, o rio coberto de palhetas de prata cintilantes: são peixinhos que saltam, andam a brincar, brilham à lua - diz a irmã, e ele acredita. A tia Zulmira, sentada na pedra ao lado dele, canta baladas tristes — Sentinela do céu avançada, Que noite serena — e de repente... 
... da janela do meu quarto 
vejo saltar a sardinha!
Então é que são mesmo peixinhos de prata que pulam ao luar. A voz fresca e sentida derrama-se pela vizinhança adormecida, mexe-lhe com alguma coisa lá dentro, afoga-o de sedução. Larga as grades e estende os braços... E amor, é de amor que ele sofre! A tia aperta-o ao peito e ri-se, beija-o com ternura: «Tolo, meu tolinho!»O seio dela é macio, o seu cabelo negro cheira bem, e ele fecha os olhos, gosta de adormecer assim no zunzum das conversas, dos risos. Sente-se embalado e parte à desfilada pelo céu de prata. 
Mas há muito mais, ali, do que o luar: os cais, os guindastes, as sereias e apitos, o arfar das locomotivas e o ranger das correntes e roldanas, o martelar das forjas e dos caldeireiros. Chegam até à mansarda distante os cheiros náuticos. Riscos de fumo babujam o azul trespassado de sol. Os vapores sobem e descem devagar o rio, parecem rastejar, deixando uma esteira de espuma, as cadeias das âncoras guincham nos estais — como tudo se ouve bem, cá tão longe, no ar imenso e cristalino! ²

Vista parcial de Lisboa tirada do Castelo S. Jorge  [c. 1870]
Panorâmica de Lisboa tirada da Sra do Monte
Francesco Rocchini (1822-1895), in BNP

Bibliografia
¹ CASTILHO, Júlio de (1840-1919). «Lisboa vista do Castello de S. Jorge» [26 de Outubro de 1901] in A Arte e a Natureza em Portugal.
² MOURÃO-FERREIRA, David (1927.1996), «Saudades de Lisboa de Eça de Queiroz a Miguel Torga», [19667]

Friday 6 October 2017

Lojas de antanho: a «Casa Chineza»

Ainda lá em cima no quarteirão do lado direito [de quem sobe na direcção do Rossio] — lê-se no jornal A Capital de 1916 — fica a «Casa Chineza» [fundada em 1866]. Essa parte da Rua do Oiro foi sempre a região classica das lojas de chá. Algumas d'elas, que tiveram longa e profícua existência, ainda hoje [1916] existem. Mas a mais importante de todas é a «Casa Chineza», cujo fornecimento de chás, cafés e outros generos de mercearia é dos melhores e dos maiores. Além disso, as collecções de artigos e preciosidades orientaes, como loiças da Índia, China e Japão, leques, charões, lenços, artigos de seda, etc., são riquíssimos, como facilmente verifica quem defronte da montra d'este magnifico estabelecimento se detiver, ainda que por poucos momentos. A «Casa Chineza» é, portanto, a continuidade da tradição d'aquella porção de rua onde se encontra installada ha muitos annos.

Casa Chineza |c. 1930|
Rua Áurea, 274-278
Mário Novais, in Lisboa de Antigamente

Casa Chineza, pormenor de calçada portuguesa

Bibliografia
A Capital: diário republicano da noite [1910-1938]

Wednesday 4 October 2017

Largo e Escadinhas de S. Miguel

Eis-nos no largo de São Miguel — o coração da alfama —, no dizer do olisipógrafo Norberto de Araújo.

Direi o seu Rossio? Não. Seria pender o respeito pelo valor das palavras. E de resto, como vês, o pequeno Largo defronte da Igreja, com a sua palmeira africana no centro, as suas ramificações de becos e vielas, a sua fisionomia de uma pobreza confessada e ingénua, não nos permitem o atrevimento: o Rossio, isto...


Estamos agora, nesta reentrância defronte da quina poente da fachada da Igreja [de S. Miguel], em presença de dois dos mais puros exemplares seiscentistas de toda a Alfama. São estes prédios contíguos, fazendo esquina, n.° 11-13 e n.° 15 [vd- 1ª imagem]; o que enfrenta o terreiro, de um largo ressalto, cor de rosa, janelas pequenas, beirais engrinaldados de ervas nascidas da humidade, é um verdadeiro apontamento para artistas de centelha. Não nos demoraremos perante eles, senão surge a pergunta sacramental: «vão-nos demolir a nossa casas?». Esta gente da Alfama não tem o pavor das revoluções, nem das trovoadas, nem dos incêndios — que se afogam em cobertores de papa —; tem o pavor das demolições.

Largo de S. Miguel, Alfama |1927|
Quina poente da fachada da Igreja de S. Miguel e o dois prédios seiscentistas contíguos, fazendo esquina, n.° 11-13 e n.° 15, destacados por  Norberto de Araújo.
Fotógrafo não identificado,
in Lisboa de Antigamente

Ora vê agora esse enfiamento por aí acima, até não sei onde, no complicado das escadarias, ao centro da ladeira empedrada à antiga, lisa e polida, que é um perigo pisá-la. É um dédalo a descoberto. Quintais, frontarias de dois palmos, gatos, crianças rebolando,  e ao fundo, estrídulo, um pregão de laranjas... (...)
Em todo o caso, aqui neste segundo largo [antigo da Cantina Escolar, vd 2ª e 3ª imagens], em ladeira, por trás da Igreja [de S. Miguel], desde há anos chamado da «Cantina Escolar», e que era o prolongamento do Beco do Alegrete [actuais Escadinhas de São Miguel] — lindo nome! — , começo do intrincado Beco das Curvinhas, olha-me este panorama de uma Lisboa que Lisboa não conhece! ¹

Escadinhas de São Miguel, na direcção de Santa Luzia |1939|
Antigo Largo da Cantina Escolar
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente

São Miguel Arcanjo tem 6 topónimos a perpetuá-lo nesta zona de Alfama que foi da antiga freguesia de São Miguel: a Calçadinha, o Largo, a Rua, a que se juntaram no final do séc. XIX o Beco e a Travessa e, já no séc. XX, em 1963, as Escadinhas de São Miguel.
A Rua de São Miguel funcionou como uma típica rua Direita medieval deste local. O Beco e a Travessa que hoje encontramos foram obra do Edital Municipal de 09/07/1894, em vez das respectivas anteriores denominações de Beco dos Mortos e Beco de São Miguel. Estas Escadinhas foram as últimas a integrar a toponímia local, nascidas do Edital municipal de 25/01/1963, para substituir o Largo da Cantina Escolar que a autarquia lisboeta quis ali colocar pelo Edital de 27/10/1916 em homenagem à Cantina Escolar de São Miguel, ali fundada em 1909, e que antes era o Beco do Alegrete.
São Miguel tido como o defensor do Povo de Deus no tempo de angústia e aquele que acompanha as almas dos mortos até o céu, tem aqui lugar derivado à proximidade à Igreja de São Miguel que ali está desde o século XII. A primitiva ermida terá começado a ser construída cerca de 1150 e a sede da paróquia do mesmo nome criada em 1180, ocupando a zona norte de Alfama, mais rural que a da freguesia de São Pedro. ²

Aspecto pitoresco do antigo Largo da Cantina Escolar
actuais Escadinhas de S. Miguel |1927|
À dir vê-se a fachada lateral da Igreja de S. Miguel e o edifício da «Cantina Escolar»;

no cimo observa-se a torre sineira da Igreja de Santa Luzia.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. X, pp. 55-57)
² cm.lisboa.pt
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