Dilecto: já cheira a carvalho das aduelas, e a vinhos de armazém. Estamos em pleno Poço do Bispo, neste Largo David Leandro da Silva, que foi presidente da Câmara de Lisboa. Não sei quem houvesse sido o Bispo que por aqui teve sua pousada, e seu pôço; quási todos os prelados de Lisboa possuiram casas arrabaldinas. Um dêles seria; certo é a designação vir longe, ainda que não recue aos séculos velhos, contemporâneos da Índia. [...]
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Edifício Abel Pereira da Fonseca [1932] Praça David Leandro da Silva, 1-7; Rua da Cintura do Porto de Lisboa, S/N; Rua Amorim, 2-12 [Poço do Bispo] Fotógrafo não identificado, in Arquivo do Jornal O Século |
Aí temos do lado do mar —
prossegue o mesmo autor —, na esquina que o Largo faz para a Rua do Amorim, que conduz à praia, o edifício da firma Abel Pereira da Fonseca, com seus prolongados armazéns, as suas enormes adegas, que lhe trouxeram a denominação da «Catedral do Vinho», e as suas oficinas, à beira mar.
Não te vou, Dilecto, explanar a razão que determinou a esta zona oriental de Lisboa uma feição comercial característica, que tem os vinhos por fulcro. É, de resto, fácil de conjecturar: vizinhança de campos de vinhas, aproximação de cais naturais de carga e descarga do trânsito antigo fluvial, e, no século passado {séc. XX], a construção da estação [comboios] de Braço de Prata. ¹
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Abel Pereira da Fonseca [1927] Praça David Leandro da Silva, 1-7; Rua da Cintura do Porto de Lisboa, S/N; Rua Amorim, 2-12 [Poço do Bispo] Estúdio Horácio Novais, in Biblioteca de Arte da F.C.G. |
Era por barco que as pipas de vinho produzidos nas propriedades do
Bombarral e as várias bebidas licorosas produzidas pela empresa deixavam
a capital para serem exportadas para países como o Brasil, os Estados
Unidos, a Suécia e enviadas para as ex-colónias portuguesas em África —
daí o símbolo da Abel Pereira da Fonseca ser um barco. A este junta-se
outro meio de transporte que foi essencial para a empresa: o comboio.
Era a linha do Oeste que permitia trazer até Lisboa o vinho produzido
nas quintas do Bombarral.
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Armazéns da firma Abel Pereira da Fonseca [1932] Praça David Leandro da Silva, 1-7; Rua da Cintura do Porto de Lisboa, S/N; Rua Amorim, 2-12 [Poço do Bispo] Fotógrafo não identificado, in Arquivo do Jornal O Século |
A empresa «Abel Pereira da Fonseca», teve como fundador o empresário com o mesmo nome, oriundo do distrito da Guarda — possuía várias propriedades
agrícolas na região do Bombarral, tendo fundado a “Companhia Agrícola
do Sanguinhal” —, e que muito jovem veio para Lisboa, e depois de ter trabalhado vários anos em empresas de distribuição de vinho, funda em 1906 uma grande empresa de distribuição de vinhos, na cidade que muito bem conhecia. Abel Pereira da Fonseca fundou no Poço de Bispo, em Lisboa, a Val do Rio (uma espécie de precursora das actuais cadeias de supermercados), que era constituída por uma rede de 100 lojas onde se vendia vinho e que lhe concedeu um título de consideração popular de «Rei das Tabernas de Lisboa» e azeite de excelente qualidade.
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Abel Pereira da Fonseca [1927] Praça David Leandro da Silva, 1-7; Rua da Cintura do Porto de Lisboa, S/N; Rua Amorim, 2-12 [Poço do Bispo] Estúdio Horácio Novais, in Biblioteca de Arte da F.C.G. |
O curioso edifício projectado pelo arquitecto Manuel Joaquim Norte Júnior, é construido entre os anos de 1916 e 1917, e enquadra-se no primeiro período novecentista do 1º quartel do século até à emergência da artes decorativas e do modernismo. O desenho da fachada principal relembra, referenciando os tonéis de vinho dos grandes janelões circulares, simples e simultaneamente muito ornamentados nos seus simbólicos cachos de uvas relembra o seu papel como armazém de vinhos.
Em 1993, a empresa cessou a sua actividade e em 1998, a Câmara Municipal de Lisboa, ocupou as instalações, para actividades de animação cultural no contexto da “Expi-98” (música ao vivo, exposições de arte, mostra gastronómica, passagem e modelos, etc.). Nos tempos actuais ali, funciona um minimercado e uma “tasquinha”.
Encontra-se classificado como Imóvel de Interesse Municipal. Espaço para a realização de eventos. ²
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Armazém vitivinícola da firma Abel Pereira da Fonseca [1927] Praça David Leandro da Silva, 1-7; Rua da Cintura do Porto de Lisboa, S/N; Rua Amorim, 2-12 [Poço do Bispo] Estúdio Horácio Novais, in Biblioteca de Arte da F.C.G. |
N.B. Como curiosidade, fica a informação de que num texto da Companhia Agrícola do Sanguinhal, pode ler-se «… era comum Fernando Pessoa, enquanto se encontrava a trabalhar levantar-se, pegar no chapéu, ajeitar os óculos e ir até ao “Abel” … as idas ao “Abel” eram, nada mais, nada menos que uma ida ao depósito mais próximo da Casa Abel Pereira da Fonseca para tomar um cálice de aguardente…» (testemunho de um colega de trabalho do poeta, Luís Pedro Moitinho de Almeida). ³
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Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XV, p. 76, 1939.
² lisboapatrimoniocultural.pt
³ glup.pt