— Quem é que se habilita à sorte, é o 1469 que anda amanhã a roda!
É profissão que jamais acabará. É vê-los por aí, sobretudo pela Baixa, oferecendo a fortuna a toda a gente. No nosso tempo, a cautela, cremos que a vigésima parte do bilhete inteiro, vendia-se por três vinténs!
E não havia barbeiro que, pelo Natal ou Páscoa, não tivesse colado no espelho, em frente do freguês, o bilhete da sorte, para que bem o observasse e comprasse enquanto lhe escanhoava os queixos.
O grande actor Estêvão Amarante, criador admirável de tantos tipos populares de Lisboa, também fez o cauteleiro num quadro de revista, cantando um fado que ficou, como todas as suas criações, na alma do povo, imitando um cauteleiro que era muito conhecido pelo pregão harmonioso e nostálgico com que oferecia a Sorte Grande!
— Quem é que se habilita à sorte, é o 1469 que anda amanhã a roda!
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| Profissões de antanho: o cauteleiro |entre 1908 e 1914| Charles Chusseau-Flaviens, in Lisboa de Antigamente |
Nesse tempo, e hoje também, os cauteleiros apregoam por Lisboa e por todo o País, mas sem a cantoria de então.
A dada altura apareceu pelas ruas da Baixa, sem apregoar, um cauteleiro fardado, que oferecia o jogo quase sempre pelos estabelecimentos. Exibia boné agaloado a ouro, sobrecasaca preta com botões amarelos, galões dourados na gola e pasta debaixo do braço, cautelosamente segura por corrente. Era um indivíduo gordo, à volta dos quarenta anos e que, no seu jeito amável, aconselhava, como quem conversa, a jogar na lotaria. Hoje os cauteleiros usam boné de pala e a profissão, aparentemente, deve ser rendosa. Haja em vista o desafogo de certas casas de lotaria!
— Quem é que se habilita à sorte, é o 1469 que anda amanhã a roda!
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| Profissões de antanho: o cauteleiro |1922-3-8| Calçada do Duque com a Rua da Condessa. Legenda no arquivo: «O coxo das cautelas na Escadinhas do Duque» Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente |
O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente? Questiona-se o Desassossegado Bernardo Soares. O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria? O velho sem interesse das polainas sujas que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã? O dono pálido da tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros, [e das Escadinhas do Duque, porque não?]. Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu — a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim — sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um “o que será dele?”. E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.(Fernando Pessoa / Bernardo Soares, Livro do Desassossego, 1931)
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| Profissões de antanho: o cauteleiro |início séc. XX| Aguadeiro e cauteleiro junto ao fontanário do Largo Trindade Coelho, antigo de S. Roque. Ao centro vê-se a Coluna mandada erguer pela colónia italiana, comemorando o casamento do Rei Dom Luís I com Dona Maria Pia de Sabóia em 1862. Paulo Guedes, in Lisboa de Antigamente |
(DINIS, Calderon, Tipos e Factos da Lisboa do meu tempo (1900-1974), p. 276, 1986).
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