Sunday, 15 October 2017

Arco Triunfal da Rua Augusta

O arco triunfal, que dá entrada para a cidade, só terminado em 1873, ressente-se do adiantado da época em que foi rematado. A parte superior, carregada de ornatos, já não corresponde à nobre simplicidade da parte antiga, mas ainda assim não conseguiu desmanchar o conjunto, tam soberanamente belo e nobre êle é. ¹


Chamamos a atenção dos nossos leitores para o artigo que se segue publicado na revista A illustração, em 1887, onde se descreve pormenorizadamente o historial atribulado deste magnifico monumento nacional desde a sua concepção — no remoto ano de 1775 até ao dia da sua inauguração, em 1873, mais de um século depois. Reza assim:

Este arco monumental vulgarmente chamado Arco da rua Augusta, fica no centro da fachada septentrional da Praça do Commercio, e é uma das mais notaveis curiosidades architectonicas de Lisbôa. [...]
Então [em 1843] o governo ordenou que os architectos em serviço na intendência das obras publicas apresentassem cada um seu projecto. [...] foi finalmente approvado e mandado realizar  o do architecto Veríssimo José da Costa. Ê força confessar que este ultimo plano revela bem mau gosto; e que, se elle ainda assim sobrelevou, como é de suppôr, os anteriormente apresentados, isso é mais um documento de quão baixo tinham arrastado entre nós a Arte o dominio fradesco e o jugo hespanhol.
Na verdade, se o facies architectonico do arco, desde a base até ao fecho (risco primitivo), é d'uma correcção e elegancia de linhas admiravel, do fecho para cima, é horrorosamente pesado e trivial aquelle enorme cubasamento d'onde o escudo nacional emerge, amarfanhado por uma inextricavel vegetação das epocas primitivas.

Arco Triunfal da Rua Augusta, em construção [ant. 1873]
Monumento a D. José I 
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Em 1850, continuava a obra devagar, e como por demais, apezar das sommas que annualmente consumia. As obras do arco da rua Augusta emparelhavam já com as de Santa Engracia, na lenda dos impossiveis nacionaes. Lia-se no Panorama d'esse tempo: «O arco da rua Augusta ha de ser, estamos d'isso convencido, um monumento de seculos. Cada geração ha de trazer uma pedra, acrescentar um festão, bordar um lavor, juntar uma estatua, rendilhar uns cinzelados, prolongar um enlablamenlo, tecer uma nova grinalda. Enquanto existir Portugal há-de estar em via de construção o Arco da rua Augusta.» 
Felizmente não foi verdade. O espirito nacional despertou enfim, e o governo decretou a maxima celeridade na conclusão da obra. [Célestin Anatole] Calmels ajustou por 11:200$000 réis a execução do grupo que encima o terraço, e Victor Bastos por 9:000$000 réis as seis figuras que ornam o entablamento.

A Rua Augusta em meados do séc. XIX, vendo-se já as colunatas compósitas do arco triunfal colocadas em 1815
 Nesta curiosa estampa, que dá o enfiamento pombalino puro da artéria central da Baixa antes de ser construido o remate do Arco Triunfal, surpreendem-se os costumes doromantismo lisboeta, numa pitoresca fisionomia local. Observem-se os candeeiros de cegonha suspensos das colunas do monumento, as sejes (transição da traquitana) e a indicação, dada pela trazeira de um carro, de que as arcadas estavam abertas aos veículos. Como se ve, o aspecto exterior dos prédios da Rua Augusta não se modificou sensivelmente- ³
Colecção J. Bárcía

Arco Triunfal da Rua Augusta em construção [c. 1862]
Václav (Wenceslau) Cifka, in Lisboa de Antigamente


Os dois insignes estatuarios trabalharam com promptidão. No dia 25 d'Abril de 1873 ficava completo o assentamento das estatuas; no dia seguinte, ao meio dia, os operarios do partido do arco iam na companhia dos seus chefes, á Conceição Velha ouvir uma missa em acção de graças por se haver concluido a obra, sem um sinistro; seguiu-se á missa um Te Deum, mandado celebrar pela irmandade da egreja; e, no dia 29, era o arco desvendado de todo ao publico, modestamente, sem a minima pompa oficial.
Não era sem tempo.

Arco da Rua Augusta
em construção [c. 1862]
(clicar para ampliar)
Václav (Wenceslau) Cifka
Repetimos, — o conjuncto do arco é desgracioso e pesado, porque a monstruosidade do entablamento superior como que esmaga a fina elegancia das columnas. Admitia-se este entablamento, era mesmo necessario, mas n'outra relação de dimensões com as columnas e pilastras  em que o arco assenta: metade da altura d'ellas. dois terços, quando muito. Mas assim, de comprimento egual, senão superior, prejudica notavelmente a harmonia do conjuncto. É verdade que as seis columnas jonicas, salientes, sustentam apenas as estatuas; porêm, visto o arco de frente, parece que supportam o peso de todo o entablamento superior, e não podem com elle.
O trabalho de canteiro, no escudo nacional e vegetações que o cércam, é primoroso.
Magnífico deveras é o grupo superior do arco, devido ao cinzel de Calmeis e digno do mais vivo applauso. Representa a Gloria coroando o Génio e o Valor. Ahi ha tudo a admirar. A Gloria, de pé, n'uma soberba attitude, entre graciosa e solemne, tem á sua direita o Valor (a força), encarnado numa esplendide figura de mulher, de capacete e adaga romana, descançando a mão direita n'uma bella cabeça de leão; á esquerda o Genio, apoiado a uma lyra, abrigando nas amplas azas uma pequena figura symbolica.

Arco da Rua Augusta [Início séc.  XX]
Observe-se o grupo escultórico sobre o 
arco de volta perfeita
(clicar para ampliar)
Fotógrafo não identificado, in LA
Cada uma das figuras manifesta claramente a ideia do esculptor; e, se a concepção artistica se deixou subordinar um pouco aos preceitos do classicismo, a execução é admiravel e absolve e annulla os defeitos do resto do monumento. Na Gloria, o modelado dos braços é perfeitissimo; o lançado e o pregado do manto é bello, fino, flagrante. Em tudo o mais ha uma grandiosidade simples de linhas, e ao mesmo tempo um grande escrupulo de acabamento, que concorrem para a harmonia geral do grupo; que lhe dão a flexibilidade, a delicadeza, o pormenor miúdo, e ao mesmo tempo a distribuição harmonica do conjuncto em grandes massas, tornando-o um dos melhores grupos ornamentaes da Europa e talvêz o mais monumental.
As estatuas de Victor Bastos representam, da esquerda para a direita: o Tejo, Viriato, Vasco da Gama, Marque; de Pombal, Nuno Alvares Pereira, e o Douro.
Sáo excelientes e fazem honra ao illustre estatuario ido monumento a Camões. Sobretudo a  estatua de Vasco da Gama e a cabeça do Tejo são duas peças d'estudo muito notaveis, que fazem honra ao cinzel nacional.
No plintho do grupo central avulta em bronze doirado este distico [em latim], de facil interpretação:

VIRTVI BVS
MAJORVM
VT. SIT. OMNIBVS. DOCVMENTO. P. P. D.

[Ou seja, em língua portuguesa:
Às Virtudes dos (nossos) Maiores,
para que sirva a todos de ensinamento.
(Monumento) Dedicado a expensas públicas]
N.B. Interrompemos aqui a narrativa do cronista para acrescentar uma nota cómica a propósito das siglas «P.P.D.» (Pecunia Publica Dicatum=Dedicado a Expensas Públicas). que se observam no final inscrição latina O povo, que tudo explica, mas à sua maneira, tinha uma interpretação para as siglas P.P.D.: «Pra passar debaixo». Quem se ria de tal explicação, não conseguia, contudo, apresentar, em geral, outra melhor. 

Na grande caixa de embasamento do arco [Sala do Relógio]prossegue o artigo — está alojado o mechanismo d'um relogio, que tem o mostrador para a rua Augusta
O arco em questão é uma obra d'arte notável; e em dias quentes de sol, impressiona sempre o viajante, que chega por mar, o branco doirado d'aquelle mármore cortando harmoniosamente, n'um sorriso de triumpho, o azul do nosso céu immaculado. ²

Arco Triunfal da Rua Augusta [190-]
Observe-se o relógio virado à Rua [da] Augusta [Figura do Rei]; monumento a D. José I; nesta época os carros eléctricos ainda circulavam no sentido Sul→Norte
António Novais, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ MATOS SEQUEIRA, Gustavo de  (1880-1962) Lisboa, 1920
² A illustração: revista quinzenal para Portugal e Brasil, dir. Mariano Pina, 1887

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