Ora aí temos no prédio n.° 32, numa reentrância da fachada, no primeiro plano, a Bica dos Olhos [...]
Vê tu que ingenuidade, que fisionomia curiosíssima de miniatural monumento seiscentista!
A Bica dos Olhos — creio eu — já hoje perdeu a sua fama, o que não impede que se vejam, de madrugada, algumas pessoas ali a lavarem os olhos.
Havia naquele tempo por estes sítios da vertente de encosta que trepava a Belver, ou seja a Santa Catarina, — recorda-nos Norberto de Araújo — um homem a quem chamavam Artibelo, e que não era outro senão o Senhor Duarte Belo [contracção de Duarte Bello], dono de um chão às Portas do Pó (a actual Rua da Boa Vista) e no qual chão existia uma bica de água corrente. Aquele tempo — era o fim de quinhentos. A água da Bica do Artibelo foi — talvez seja ainda — milagrosa. Possuía a virtude de curar as doenças dos olhos, contando que a tomada da água se desse antes do nascer do sol.
De seu começo a Bica situava-se mais atrás do prédio da esquina da Travessa do Sampaio e Rua da Boa-Vista, em cujo vão de parede, com ombreiras e vergas de pedra, se encontra desde 1709, por imposição da Câmara feita a um carpinteiro [chamado António Ferreira] que comprou o chão [por 1:750$000 réis] onde, antes, o manancial milagreiro se encontrava. Lá está esculpido que «o dono da propriedade é obrigado a conservar «esta bica sempre corrente à sua custa».
É esta a Bica dos Olhos.
As fontes, as bicas, como alguns chafarizes desaparecidos ou secos nesta
Lisboa de nascentes e arroios, andaram sempre rodeadas de lendas e de
prestígios alfacinhas; assim a do Andaluz, a do Desterro, a do Regueirão dos Anjos, a da
Samaritana, de que existe apenas o espaldar mutilado, a da Fonte Santa, o
desaparecido Chafariz de Arroios.
A Bica dos Olhos é humilde e pobrezinha. Lá está com a sua data de 1675 (época talvez em que lhe foi encontrada virtude) e com a sua nau alfacinha.
Olhos de trinta gerações que passaram de madrugada fria pela Bica dos Olhos — onde estais vós? Embarcadiços, calafates, remolares, mendigos, colarejas! Talvez mesmo que algumas donas velhinhas das casas dos Condes Barões de Alvito ou dos Carvalhais, provedores da Casa da Índia, ou alguns dos frades de S. João Nepomuceno, mandassem buscar pelos criados, noite alta, uma garrafinha da linfa virtuosa.
Olhos de trinta gerações que passaram de madrugada fria pela Bica dos Olhos — onde estais vós? Embarcadiços, calafates, remolares, mendigos, colarejas! Talvez mesmo que algumas donas velhinhas das casas dos Condes Barões de Alvito ou dos Carvalhais, provedores da Casa da Índia, ou alguns dos frades de S. João Nepomuceno, mandassem buscar pelos criados, noite alta, uma garrafinha da linfa virtuosa.
A Bica dos Olhos, eis um monumento ingénuo de humildade. E talvez por isso subsiste, mesmo já sem olhos que creiam nela
Bica dos Olhos |1951| Rua da Boavista, 30 = 1675 = = HE OBRIGADO O DONO DESTA PROPRIEDADE A CONCERVAR ESTA BICA SEMPRE CÒRENTE Á SUA CUSTA = Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente |
O chamar-se-lhe bica dos Olhos — lê-se no Archivo pittoresco — provém do seguinte caso, que a tradição tem conservado até hoje. Um francez que descobriu na agua desta bica grandes virtudes para inflammação de olhos, começou a vendel-a em vidrinhos com um nome pomposo, e vindo de origem supposta. Com efeito esta agua fez immensas curas, diz-se, e o industrioso estrangeiro ganhou muito dinheiro. Por fim o criado que ia de noite buscar a agua á bica de Duarte Bello, que o amo vendia como especifico, revelou o segredo, pelo que o francez teve de fugir, divulgando-se a virtude que tinha a agua d’aquella bica, concorrendo alli desde então muitos doentes a lavar os olhos, e a ser tirada em garrafas para o mesmo uso.
O auctor do Aquilegio Medicinal, em que se dá conta das aguas de caldas, de fontes, rios, poços, lagoas e cisternas do reino de Portugal, era medico d'el-rei D. João V, e publicou este curioso livro em 1726. E sobre tudo, o sr. J. Sergio Velloso de Andrade, na sua accurada Memoria sobre os chafarizes, bicas, fontes e poços publicos, diz positivamente que a bica d'antes chamada do Artibello é a actual bica dos Olhos.
Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XIII, pp. 78, 1939.
id., Legendas de Lisboa, pp. 68-69, 1943.
Archivo pittoresco: semanario illustrado - Vol. V, 1862.
Great post.
ReplyDeleteDa Lisboa que eu amo.
ReplyDeleteKeep working ,splendid job!
ReplyDeleteAltamente!
ReplyDeleteBelo post. Vivo ao lado e nao conhecia esta curiosa e rica historia.
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