Sunday 17 March 2024

Antiga Rua Martim antes das demolições efectuadas na Baixa da Mouraria

Na Baixa da Mouraria, onde o passado e o presente se entrelaçam, encontramos o Martim Moniz, encravado entre o Borratém, a Rua da Mouraria, o começo da Rua da Palma, a encosta que leva ao Hospital de S. José, o início da Rua de S. Lázaro e as traseiras de S. Domingos. Com as demolições na Baixa da Mouraria, parte da Rua da Palma foi derrubada e, com ela, o velho Teatro Apolo, antes chamado do Príncipe Real (D. Carlos), apenas pouparia o bairro da Mouraria e a Ermida de Nossa Senhora da Saúde.

A ocupação humana deste lugar remonta a 8 mil anos atrás como povoado neolítico da encosta de Sant ' Ana, situado na margem do Regueirão dos Anjos, no vale da Mouraria. Porém, somente a partir da Idade Média a fixação humana neste local se tornou mais significativa. No século XIV a área correspondente à praça actual era atravessada pela Cerca Fernandina (1373-1375), estrutura muralhada que delimitava a cidade e da qual ainda hoje restam vestígios na zona, como a Torre do Jogo da Péla.

Antiga Rua Martim antes das demolições efectuadas na Baixa da Mouraria |c. 1949|
Actual Praça de Martim Moniz
Estúdio Horácio Novais, in Lisboa de Antigamente
Nota(s): o local e a data da foto não estão identificados no arquivo (FCG)

A intenção de unir o núcleo histórico à cidade em expansão, e as medidas higienistas e embelezadoras do regime político de então, determinaram as demolições empreendidas nas décadas de 40 e 50 do século XX. Desaparecia uma dezena de ruas, becos e pátios e com eles uma parte significativa da memória da cidade.

Antiga Rua Martim antes das demolições efectuadas na Baixa da Mouraria |c. 1949|
Actual Praça de Martim Moniz
Estúdio Horácio Novais, in Lisboa de Antigamente
Nota(s): o local e a data da foto não estão identificados no arquivo (FCG)

Friday 15 March 2024

Cantina Escolar de Alcântara

A Cantina Escolar de Alcântara, inaugurada a 25 de Julho de 1909, estava vocacionada para a protecção das crianças da Escola Asilo S. Pedro de Alcântara, Sociedade Promotora de Educação Popular e Escola Paroquial das Necessidades. Funcionava em terreno cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, na Rua de Alcântara, n.º 27. Tinha uma grande sala de refeições e uma grande sala de banho para banhar as crianças. A primeira refeição foi servida a 50 crianças. Os sócios da cantina eram 400. Em 1910 contava com 900 sócios e alimentava 200 crianças.
(RIBEIRO, Lia. A popularização da cultura republicana: 1881-1919, pp. 178-179, 2011)

Rua de Alcântara, 27 |1909|
Cantina Escolar de Alcântara, instalada no edifício da escola central n.º 76 
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Sunday 10 March 2024

Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club

Dois dos clubes em foco, o Magestic, entre 1917 e 1920, e depois o Monumental, até 1928, ocupam o edifício do Palácio Alverca, também conhecido por Palácio de São Luís ou Palácio Paes do Amaral, situado na via hoje identificada por Rua das Portas de Santo Antão. [...]

A construção da mansão da família Paes de Amaral, viscondes de Alverca, é datada, por diferentes olisipógrafos, dos finais do século XVII. Desconhece-se, no entanto, uma data precisa ou fontes que comprovem esta datação. A fundamentar esta hipótese são evocados alguns elementos arquitectónicos presentes no edifício, anteriores à transformação do Palácio Alverca em 1917-1919. O edifício terá sido erguido, após o terramoto, no espaço liberto das muralhas [Cerca Fernandina] da cidade e sobre parte das suas ruínas.

Palácio Alverca |1968|
Casa do Alentejo desde 1932. Rua das Portas de Santo Antão
Armando Serôdio ,in Lisboa de Antigamente

Segundo o olisipógrafo Luís Pastor de Macedo, no local onde foi erguido o Palácio, e onde funciona depois o Magestic Club e, posteriormente, o Monumental Club, existira antes um curral de porcos:
«No chão onde esteve o curral dos porcos, edificou-se, muitos anos depois, o palácio de Miguel Pais do Amaral, no qual, já nos nossos dias, esteve o clube mais chique de Lisboa – O Monumental. Quem pensaria então, naquelas noites lilases ou azuis, com tangos rosas ou verdes, que ali, no mesmo sítio, também já tinham chafurdado porcos? [...]
Entre 1917 e 1919, o Palácio Alverca é objecto de uma profunda intervenção, a fim de acolher o Magestic Club. No processo de obras salienta-se que nos trabalhos serão utilizados unicamente materiais de «primeira qualidade» e que todas as obras seriam «executadas conforme preceitos técnicos de construção e com os cuidados e fiscalização que a importância das obras do club reclamam». [...]

Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club |c. 1930|
Rua das Portas de Santo Antão
Pátio estilo neo-árabe risco do arquitecto Silva Júnior (1918)  e escadaria.
Naturalmente em «pastiche», transpira certa frescura mourisca, mesmo nas varandas, escadaria e galerias. [Araújo: 1939]
Fotografia: Casa do Alentejo 

Segundo a descrição feita na época pela revista A Arquitectura Portuguesa, que pela grandiosidade da obra lhe dedica dois números seguidos, o projecto da Sociedade do Magestic Club não tinha como objectivo único ganhar fortuna: era antes uma empresa com fins patrióticos, que ambicionava abrir, em local apropriado, um «club de primeira ordem, para ser apresentado pela primeira sociedade e onde, os estrangeiros que visitassem o nosso país, pudessem ser condigna e luxuosamente recebidos».
A revista descreve ainda a «grandiosa escadaria» que uma porta vulgar não deixa adivinhar, a sala de bilhar, a «sala de Bridge e outros jogos de vaza», o bengaleiro, o vestiário de homens e senhoras, as casas de banho, o Toilette das senhoras em estilo Luís XV, a barbearia e o gabinete do director, mencionando ainda sete gabinetes reservados ainda não concluídos na altura da publicação do artigo. É de referir a menção ao cuidado sistemático para que toda a decoração e mobiliário destes espaços estejam de acordo com a decoração e o estilo arquitectónico adoptado.

Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club |c. 1930|
Rua das Portas de Santo Antão
Salão dos espelhos em estilo neo-barroco (Salão de Baile e Restaurante).
A. sala de baile é toda decorada no tecto e nas paredes por Bemvindo Ceia, e outra sala contigua apresenta pinturas de Domingos Costa. [Araújo: 1939]
Fotografia: Casa do Alentejo 
Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club |c. 1930|
Rua das Portas de Santo Antão
Sala de Bridge e outros jogos de vaza com pinturas de Domingos Costa
.
Fotografia: Casa do Alentejo 
Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club |c. 1930|
Rua das Portas de Santo Antão, 44-60
Pormenor  de uma das pinturas de Domingos Costa que cobrem as paredes da Sala de Bridge e outros jogos de cartas.
Fotografia: Casa do Alentejo 

O Monumental procura manter essa imagem de exclusividade, luxo, elegância e respeitabilidade sendo, nos anos seguintes, palco de diversos almoços e banquetes, alguns dos quais verdadeiramente luxuosos. Contudo, tal não impede a sua associação ao jogo e a outras actividades consideradas por alguns como imorais. A 24 de Novembro de 1928, um correspondente em Lisboa do jornal O Provir de Beja dá notícia de um fogo ocorrido no clube em meados desse mês, comentando que a Natureza, indignada com as imoralidades ali praticadas, se revoltou e «pegou fogo ao antro».
Em 1928 o clube é encerrado pelas autoridades, em consequência das medidas legislativas tomadas pelo Estado Novo para a repressão do jogo. O edifício mantém-se fechado nos quatro anos seguintes, na esperança de poder voltar a explorar o negócio dos jogos de azar. Em 1932, confrontados com a impossibilidade desta hipótese, os proprietários do Monumental Club procuraram transaccionar com o Grémio Alentejano todos os direitos que possuíam sobre o imóvel, bem como o recheio de que são donos.

Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club |c. 1930|
Rua das Portas de Santo Antão, 44-60
Sala de Bilhar decorado com azulejos de Jorge Colaço.
São de ver-se outras salas, tais as de <estar», «de fumo», de jogos de vasa, com magníficas decorações em azulejos de Jorge Colaço (1918), uma delas dando, a azul, cenas dos «Lusíadas», outra, em pintura policroma, reproduzindo quadros de romaria e feiras de todo o país, outro ainda figurando em grandes painéis caçadas aos javalis, uma da çaçada real do século xv, uma cena medieval de perseguição de touros a rojão[Araújo: 1939]
Fotografia: Casa do Alentejo

Nota(s): A agora denominada Casa do Alentejo ainda hoje tem sede neste palácio e no interior do edifício continuamos a poder ver o trabalho de remodelação que aí foi realizado.
Mais imagens aqui.




Palácio Alverca: O Magestic Club e o Monumental Club |c. 1930|
A barbearia (esq.) e o bar com painel da autoria de José Ferreira Bazaliza (dir.).
Fotografia: Casa do Alentejo







Bibliografia
 VAZ, Cecília Santos, Clubes nocturnos modernos em Lisboa: sociabilidade, diversão e transgressão (1917-1927.
ARAÚJO, Norberto de,, Peregrinações em Lisboa, vol. XIV, p. 105.

Friday 8 March 2024

Avenida 24 de Julho com o Beco da Galharda

O Beco da Galharda — designação de toponímia não oficial — , perpendicular à Avenida 24 de Julho, tem início entre os seus n.ꟹ 68 e 74, dá acesso ao estacionamento existente no logradouro dos edifícios 74 a 76 e termina frente ao n.º 70, e estabelece a ligação com o Pátio do Pinzaleiro.

Paralelo a este  Beco da Galharda «corre o estreito Beco da Galheta (ou da Calheta) — quem dá por ele? — no qual se rasgam, para norte, umas escadinhas, sob passadiços, deixando uma nota pobre de pitoresco. Na segunda metade do século passado, tudo isto por aqui fora eram «tercenas», e que talvez, em rigor, não valessem aquela designação. Não admira, pois, que neste Beco da Galheta [e no da Galharda] se continuem, em série, armazéns encerrados, gradeados, negros — disto que já ninguém lembra o que foi um dia». [...]
É tudo a orla «marginal «velha» do começo do século passado, muito antes do aterramento do areal, quando o mar batia no paredão das tercenas, e por aqui cheirava a maresia, e a cereais quentes pelo repouso nos porões». [Araujo: 1939]

Avenida 24 de Julho (68 -74) com o Beco da Galharda |1912|
Cem anos depois, a fachada do edifício à esquerda — que faz gaveto com o Beco da Galharda — foi recuperada e ainda está de pé, assim como, a fachada do prédio ao centro e na imagem seguinte, por trás do gradeamento que se pode ver mais à direita.
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

As ovarinas (peixeiras) formam com seus pais, maridos e irmãos a mais curiosa população desta cidade, repara Maria Rattazzi (c. 179); população inteiramente à parte e com carácter e feição própria. São esses rudes operários do mar que fornecem peixe à capital do país; os homens embarcam para ir pescá-lo, as mulheres percorrem para vendê-lo as ruas da cidade, levando à cabeça uma canastra de fundo chato, equilibrada com graça e habilidade.
É original a sua maneira de trajar: na cabeça usam um chapéu redondo de feltro preto, de grandes abas reviradas; no peito um lenço de cor; acima da cintura uma larga faixa de lã, que dá várias voltas à roda do corpo; saias curtas só até ao meio da perna; pernas e pés descalços.
[Maria Rattazzi ( 1833-1902 ) . Portugal de Relance . [c . 1879)]

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.
{Cesário Verde (1855-1886, O sentimento dum ocidental, 1880]

Avenida 24 de Julho (68 -74) com o Beco da Galharda |c. 1930|
Ao fundo nota-se a fachada do edifício — que faz gaveto com o Beco da Galharda — aqui ocupado por uma fábrica de chocolates.
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Sunday 3 March 2024

Profissões de Antanho: vendedores de melancias

 — Quem a quer da  várzea, melancia á faca!

Era assim o pregão saloio, que os saloios sempre ganharam a vida com a barriga de Lisboa — recorda Calderon Dinis. Escarafunchando a terra magnífica que Deus lhes deu, sabiamente a têm aproveitado tirando partido de tudo o que ela lhes dá. Sempre assim foi e noutros tempos eram eles mesmo que, de rua em rua, apregoavam e vendiam as suas couves e alfaces, como as favas e as ervilhas.
Com a saborosa melancia vermelha e fresca que era uma beleza, os saloios corriam meia Lisboa com as suas carroças, a malta a comprar e eles mesmo a parti-las em grossas talhadas, refrescando-se os lisboetas nas tardes quentes, que aquilo foi sempre fruto de Verão.
Estamos a lembrar-nos que, no largo de Cacilhas, onde hoje é parque e estação de autocarros, se fazia o grande mercado da melancia, amontoadas em pirâmides, tal era a quantidade do magnífico fruto!

Vendedeira de melancias no cais da Ribeira Nova |1912|
As saborosas e frescas talhadas.
J
oshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Vem das várzeas nos grandes catraios — lê-se na Illustração portugueza, 1910 —, nos barcos d'agua à riba e nos cais, da Ribeira Velha a Belém, é ver os homens atirando-as com metódica precisão, dos botes para terra como grandes bolas num torneio. Raramente uma cai para gaudio, regalo e refresco da garotada que d'olho alerta espera sempre ganhar alguma coisa nos espectáculos que presenceia.
Neste tempo a melancia, nascida nas Várzeas de Alcochete e Ribatejo além, bem regada e linda na sua cama de folhas largas é manjar de todas as mesas; cai na cidade como um chuveiro de balas: expõe-se nas portas dos estabelecimentos frutas onde os ricos vão e aparece aos montões nos mercados. As portas das vendas e dos pequenos Jugares lá estão duas ou três; nas mercearias mostram-se com a designação do preço por quilo como se em vez daquela casca verdenegra, que tanas promessas de frescura contem, tivessem os exteriores vermelhos de queijos flamengos.
Mas onde ela tem todo o seu carácter, onde aparece como o anuncio de um grande consolo é na cidade, para os que a não deixam; anunciada no pregão cantarolado:

 — Quem a quer da várzea, melancia á faca!

Profissões de Antanho: descarga melancias no cais da Ribeira Nova |1912|
Uma melancia a voar do barco para o cais.
J
oshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

O pregão atroa Lisboa por este tempo de calor ardente e as mulheres com as suas gigas a cabeça, tostadas pela soalheira, vão vendendo a mais fresca das frutas, a melancia de coração rubro, que é um alarme e é uma delicia.

 — Quem a quer da várzea, melancia á faca!
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Bibliografia
DINIS, Calderon, Tipos e factos da Lisboa do meu tempo: 1970-1974, 1986.
Illustração portugueza, 1910.

Friday 1 March 2024

Rua de Angola com a Rua do Forno do Tijolo

A Rua de Angola, situada na Freguesia dos Anjos, é um topónimo atribuído por Edital Municipal de 19 de Junho de 1933, ao arruamento até aí designado por Rua E entre a Avenida Almirante Reis e o prolongamento da Rua Maria – Bairro das Colónias.

«Xarca (a)» Assim se chama ainda correntemente ao «Caminho do Forno do Tijolo», isto é, à depressão profunda de terreno entre a Graça e o Monte, em Lisboa. Do árabe Axacca (com r intercalado, Axarca (como em «alicerce, alferce», etc.) que significa «fenda», terreno despenhado e apertado, garganta entre colinas», nome que bem convém ao sítio. Como em outros casos, o a inicial tornou-se como o artigo feminino português e diz-se por isso a Xarca.” 
(LOPES e CASTELO-BRANCO, p- 1811968)

Rua de Angola com a Rua do Forno do Tijolo |1960|
Vendedores ambulantes de gravatas e de cintos.
Arnaldo Madureira, in Lisboa de Antigamente
Nota(s): o local da foto não está identificado no abandalhado amL

Particular à sua anterior designação “Caminho do Forno do Tijolo”, esta advém da existência de oficinas e fornos de telha e tijolo na área circundante, devido à riqueza dos terrenos em argila. Sobre os fornos de tijolo que emprestaram primeiro o seu nome ao sítio e depois a um caminho e a uma calçada (actual R. Maria da Fonte), diz o sr. José dos Arqueólogos Portugueses: «Se bem que, como dissemos, essa oficina e fornos, fossem muito antigos, só passaram a dar o nome ao sítio, a partir dos princípios do século XVIII; só dessa época por diante se começa a chamar Sítio do Forno do Tijolo, ao local onde se fabricava a telha e o tijolo e às terras próximas. Até então eram conhecidas vagamente por terras que ficavam ao Almocávar ou ao pé de N. Sr.ª do Monte. «Extintos os fornos e oficina, em meados do século XVIII, a sua memória perdurou no nome das ruas que, cá debaixo desde a Travessa do Maldonado, iam subindo até à Cruz dos Quatro Caminhos: Calçada e Caminho do Forno do Tijolo. Há uns quinze anos desapareceram estes nomes já tradicionais para serem substituídos pelos que agora se ostentam nas esquinas: R. Maria da Fonte e R. Angelina Vidal/R. do Forno do Tijolo (topónimo de 1954) ».
(MACEDO, Luiz Pastor de. Lisboa de lés-a-lés, 1940, pp.  110,111,112)

Rua do Forno do Tijolo |1964-02|
No n.º 3, edifício apalaçado à esq., está sedeada a Casa Provincial das Servas de Maria Ministras dos Enfermos.
Augusto J. Fernandesin Lisboa de Antigamente
 

Sunday 25 February 2024

Hotel Central

Estamos de volta ao velhinho Sitio dos Remolares, e ao afamado Hotel Central, desta vez na companhia de Marina T. Dias e de Eça de Queiroz.  Delineada pelos engenheiros do Marquês de Pombal, a futura Praça do Duque da Terceira permaneceu quase deserta até ao início do século XIX, constituindo então apenas parte dos vastos areais que delimitavam sul de Lisboa. Mesmo após a construção dos primeiros quarteirões a nascente e a poente, o rio chegava até ao extremo sul do largo, formando uma pequena praia no local onde mais tarde seria construída a estação de caminho de ferro da linha de Cascais. Contígua à praia, a Praça dos Remolares tinha já sido ampliada pelas obras de construção do Aterro, mantendo na tradição oral o nome do antigo cais: Sodré.
Falar do Cais do Sodré é também falar da Lisboa queirosiana — e do seu Hotel Central, Eça refere-o em Os Maias, A Capital, O Primo Basílio e A Correspondência de Fradique Mendes. A primeira hospedaria que ocupou o quarteirão com os números 20-27 do Largo (antigos números 3 a 11) chamava-se Estrella Branca (c. 1835). Em 1838 fora já trespassada à francesa Madame Lenglet que lhe deu o título de Hotel de France

(Grand) Hotel Central |c. 1875|
A oitocentista praça dos Remolares ainda sem a estátua do Duque da Terceira (1877) vendo-se ao fundo a primeira ponte de acesso aos barcos; no local onde se vê um candeeiro existiu, até 1874, um relógio de sol, conhecido por Meridiana dos Remolares. 
Rua Bernardino Costa antiga do Corpo Santo; à esq. nota-se a embocadura da Rua do Alecrim com o Alfaiate Rego (Rego Tailor) no gaveto leste.
J.. Laurent, in Lisboa de Antigamente

Sobre o rio, a tarde morria numa paz elísia. O peristilo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no colo. Uma mulher passava, alta, com uma carnação ebúrnea, bela como uma deusa, num casaco de veludo branco de Génova. O Craft dizia ao seu lado: Très chic. E ele sorria, no encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de coisas vivas.
(Eça de Queiroz, ln Os Maias, 1888)

Com uma sólida fama e um excelente serviço de mesa, o hotel recebeu hóspedes ilustres, entre eles o compositor Franz Liszt, na temporada de 1844-1845. Novamente trespassado (c. 1855), transforma-se no Hotel Central, supra-sumo da possível opulência lisboeta, com as suas ceias elegantes e as suas belas janelas então viradas para o Tejo.
O Central foi,  na Lisboa da segunda metade de Oitocentos, aquilo que o Avenida Palace viria a ser na Belle-Époque, ou o Aviz no tempo da Segunda Grande Guerra. Recebeu reis e diplomatas famosos, figuras mundanas e celebridades do universo das artes. Foi também num dos seus quartos que o próprio Eça de Queiroz terá pedido ao conde de Resende a mão da irmã deste, Emília de Castro Pamplona, sua futura mulher. O episódio é narrado por Luís Pastor de Macedo. 

Hotel Central |c. 1904|
Praça Duque da Terceira: Cais do Sodré. Ao fundo observa-se o extinto Arsenal de Marinha que deu lugar à Av. Ribeira das Naus.
Postal ilustrado, edição da Casa Gonçalves, in Lisboa de Antigamente
Hotel Central, depois das adaptações sofridas por volta de 1920 |c. 1936|
Praça Duque da Terceira
No gaveto norte deste edifício estiveram vários botequins célebres. À O primeiro foi o «jacobino» Café do Grego; o último foi o Café Londres, encerrado em 1935.
Mário Novais, in Lisboa de Antigamente

«Numa das suas vindas a Portugal, informado que o conde, vindo do Porto, se hospedara em Lisboa no Hotel Central, e apreciando em extremo a convivência daquele seu grande amigo, [Eça] mandou também as suas malas para o mesmo hotel e ali ficou durante largos dias.
Certa manhã, quando [...] se encontrava no quarto do seu amigo, justamente na ocasião em que este, de cara ensaboada, se dispunha, com a navalha na mão, a barbear-se, o criado, pedindo licença, entrou e entregou uma carta que viera pelo correio. 
   — Vê lá, menino, o que aí vem -—- diz o conde a Eça de Queiroz.
   — É uma cartada tua irmã.
   — Faze favor, abre-a e vê o que diz essa teimosa.
   O grande escritor obedeceu e ao terminar a sua leitura, depois de a dobrar vagarosamente, diz a Rezende:
   — Peço-te mão de tua irmão» (Luís Pastor de Macedo notas em A Ribeira de Lisboa por Júlio de Castilho, vol. 4).

Hotel Central, depois das adaptações sofridas por volta de 1920 |c. 1936|
Praça Duque da Terceira; Cais do Sodré e 
Mário Novais, in Lisboa de Antigamente

O Hotel Central encerrou em 1919, após um breve período de crise económica, distantes que iam já os hábitos de convívio da Lisboa queirosiana. A Sociedade Estoril, nova arrendatária, mandou então proceder a obras de vulto na fachada e interiores do edifício, cujas características gerais pouco têm agora a ver com a da casa que albergou Eça, Ramalho ou Guerra Junqueiro. O próprio Cais do Sodré sofrera enormes alterações ao longo do meio século de existência do Hotel Central. Por volta de 1880 a praia chegava ainda sé ao larguinho posteriormente ajardinado (Jardim Rogue Gameiro, plantado entre 1912 e 1915), e alguns quartos do Central estavam, como era uso dizer-se, «sobre o no». Perderam esse privilégio em 1907, vendo erguer-se-lhes à frente o edifício da Administração do Porto de Lisboa (onde está o célebre relógio com a «Hora Legal»). O terreno era tão incerto (basicamente areia da praia, movimentada pelas marés) que foi necessário fazer assentar todas as paredes desse prédio sobre estacaria. Ao centro da praça esteve, até 1874,um relógio de sol muito célebre e muito troçado: a «Meridiana dos Remolares», apeada para que desse lugar ao monumento em homenagem ao Duque da Terceira.

Hotel Central, depois das adaptações sofridas por volta de 1920 |c. 1936|
Fachada S. sobre o Cais do Sodré e Travessa do Corpo Santo; Praça Duque da Terceira
Mário Novais, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
MARINA, Tavares Dias, Lisboa Desaparecida, vol. 6, pp. 179-184, 1989.

Friday 23 February 2024

Avenida de Madrid

Pelo Edital de 29/07/1948, a Câmara Municipal de Lisboa atribuiu mais onze topónimos na mesma freguesia, todos ligados a personalidades de cariz internacional ou cidades estrangeiras com o objectivo de dar algum cosmopolitismo à cidade de Lisboa, a saber:
Praça Pasteur (cientista francês); Avenida Marconi (cientista italiano); Rua Cervantes (escritor espanhol); Rua Afrânio Peixoto (médico e escritor brasileiro); Avenida de Paris; Rua Vítor Hugo (escritor francês); Praça João do Rio (escritor brasileiro); Praça de Londres; Avenida Rio de Janeiro; Avenida João XXI (o único papa português).

Avenida de Madrid, junto ao n.º 11 |1953|
Claudino Madeira, in Lisboa de Antigamente

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