Sunday 28 August 2022

Praça do Príncipe Real: a Patriarcal e a Praça do Rio de Janeiro

Estamos numa das praças mais lindas, e mais «alfacinhas» de Lisboa  — a Praça do Rio de Janeiro [e de novo, desde 1948, do Príncipe Real]. Deves ter no ouvido algumas das designações deste largo terreiro  e eu, — diz Norberto de Araújo —  sempre por curiosidade, tas relembro pela ordem das idades: «Chãos da Ferrôa» no século XVI, a mais antiga que se lhe conhece; «Alto da Cotovia», denominação que perdurou mesmo através de outros dísticos posteriores, municipais e populares; sítio das «Casas do Conde de Tarouca», cerca de 1755; «Patriarcal Queimada», depois de 1769; sítio das «Obras do Erário Novo», em 1810-1815; «Praça do Príncipe Real», em 1855; «Praça do Rio de Janeiro» depois de 1911.

Em boa verdade esta Praça é das mais modernas da capital, no seu aspecto urbano e paisagista; data assim de 1879. A sua regularidade é contudo notável, e respira um ar sadio, gozando desafogo, uma relativa tranquilidade, e oferecendo curiosos aspectos: pousio de «reformados» à sombra do velho cedro copado, com sessenta anos idade, brinco de crianças, jardim «de estar» dos nostálgicos e desocupados inocentes.
Pois, Dilecto, sentemo-nos também à sombra do cedro, ouvindo cantar o repuxo do lago, que mal se distingue no murmúrio afogado do conjunto entre o espesso arvoredo que tem resistido às devastações do tempo.

Praça do Príncipe Real |1940|
Antiga Praça do Rio de Janeiro
A praça foi traçada em 1853 e o jardim, plantado em 1869, projecto do jardineiro João Francisco da Silva. Em termos urbanísticos é um exemplo do Romantismo das últimas décadas do século XIX.
«O Príncipe Real é um largo deliciosamente arborizado. Do seu harmonioso conjunto, destacam-se o majestoso cedro, considerado de interesse público, a deliciosa araucária e os formosos ulmeiros, também como tal distinguidos e as decorativas palmeiras. A «araucária columnaris» (araucária colunar — Nova Caledónia), de aspecto altaneiro e delgado, forma com o corpulento «cupressus», uma estranha parelha, que aos espirituosos frequentadores do recinto não passou despercebida, e por isso atribuem esse local de recreio o dito popular de Jardim do Bucha e do Estica». [Lisboa em quatro horas e Lisboa em quatro dias, 1895]
Judah Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Um pouco antes de 1755, neste alto cômoro da Cotovia, sobranceiro sobre a ponta do Salitre e portas de Valverde — mais largo para norte do que é hoje [em 1938], depois de urbanizado — existia apenas o Palácio dos Penalvas, à esquina das actuais Escadinhas da Mãe d'Água, e ao fundo do curto Arco do Evaristo. No centro da actual Praça andava o Conde de Tarouca construindo um Palácio, e ao local, por isso, chamava o povo «Casas do Conde de Tarouca», e o povo crisma a seu bel-prazer os sítios e as coisas, de modo que as denominações acabam por entrar na linguagem oficial e, quando as Câmaras as alteram ou corrompem, levam lustros, levam até séculos a apagar-se.
O Terramoto abalou inteiramente o edifício Tarouca soerguido, resignando-se o fidalgo no infortúnio, e compondo versos sobre os destroços.
Como a Patriarcal, que estava assente na Capela Real do Paço da Ribeira, tivesse ardido no dia do horroroso cataclismo, deliberou-se, após hesitações, transferir a Basílica para os restos, de pé, do palácio Tarouca, na «Cotovia»; a bênção foi dada em 26 de Junho de 1756, e logo nesse ano se realizou uma procissão, depois repetida, que deu o nome à Rua da «Procissão» (desde há poucos anos denominada de «Cecílio de Sousa»). 

Praça do Príncipe Real |c. 1869|
Lago octogonal com repuxo; ao fundo notam-se as torres e zimbório da Basílica da Estrela. 
Ао repuxo dedicou Júlio de Castilho um hino de ternura, mais próprio de poeta, como o Mestre se mostrava muitas vezes: «Quando ele arroja, metros ao alto, as suas pérolas fluídas, decompondo a luz, sussurrando frescura, e espadanando-se todo vaidoso no azul da atmosfera, está, muito de industria, repassando as águas nos gazes aéreos que as vivificam e as tornam potáveis; pensa em nós; prepara para nós a melhor das bebidas; colabora na higiene da Cidade. Aquele tanque é um sábio: reconhece as leis da física; sabe que os líquidos, vindo de longe, impregnando-se do calcário dos canos, e morando lá em baixo às escuras, se tornam pesados; quer aligeirá-los , banhá-los de sol e de oxigénio. Aquele tanque é um poeta utilitário: mistura habilmente o Belo e o Bom. Olhemos pois com gratidão para esse pequenino Oceano de puríssimas linfas, que abastecem as cozinhas, e amanhã brilharão aos poucos nas nossas taças de cristal. [Lisboa Antiga: 1904]
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

E a Igreja [armada em madeira] foi-se construindo, no edifício adaptado; era imponente: três naves, largo cruzeiro, quinze capelas, um zimbório oitavado, e anexos esplêndidos. Treze anos perdurou: a Patriarcal foi devastada por um terrível incêndio em 10 de Maio de 1769, obra criminosa de um empregado da Igreja, que pelo fogo queria ocultar seus sacrílegos roubos; foi justiçado, depois de lhe cortarem as mãos no próprio local onde os escombros fumegavam ainda. E aí está a origem da designação de «Patriarcal Queimada».[...]
As ruínas e montes de pedregulho ficaram por aqui durante dezenas de anos, ninho de valhacoutos. Em 1807 pensou-se em levantar no sítio o novo Erário Régio, a casa do Tesouro (pois ardera o do Rossio) mas o projecto, que era do Visconde de Vila Nova da Cerveira, não teve seguimento, embora se chegasse a começar a obra, e nela se gastassem alguns milhões de cruzados.
Em 1841 ainda o sítio continuava a ser vazadouro público e albergue de patifes. Só em 1856 se começou a terraplanar o local, que pouco depois recebeu iluminação. Já chamada «Praça do Príncipe Real», em 1859, começou então a estudar-se o seu aformoseamento, com a construção dum lago, por acordo entre a Câmara e a Companhia das Águas; os restos da «Patriarcal Queimada» foram então destruídos a tiros de pólvora.

Praça do Príncipe Real |1945|
Antiga Praça do Rio de Janeiro
 Localizado no subsolo da Praça, existe o Reservatório da Patriarcalprojectado em 1856 pelo eng. francês Mary. Construído entre 1860 e 1864 para servir a rede de distribuição de água da zona baixa da cidade. 
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente
Praça do Príncipe Real |1945|
Antiga Praça do Rio de Janeiro
 No centro da praça está o monumento-memória a França Borges, o jornalista fundador de «O Mundo», foi erigido em 1924; é obra de Maximiano Alves; à dir. observa-se destaca-se o Cedro-do-Buçaço, árvore secular com mais de 20 metros de diâmetro.
Ferreira da Cunha, in Lisboa de Antigamente

Em 1864 regularizou-se a disposição da Praça, tornando-a quadrada, e alinhando algumas edificações que entretanto se tinham erguido, o que tudo se concluiu em 1863. Construiu-se então a muralha sobre a Rua da Procissão e plantou-se este magnífico jardim, que estamos contemplando.
O «Príncipe Real» começou a existir, pequeno parque e logradoiro, com a sua ingenuidade, o seu repuxo e a sua «memória esquecida» de anteriores desgraças. E assim até hoje…==

Muralha da Praça do Príncipe Real sobre a Rua Cecílio de Sousa, antiga da Procissão |1960|
Terraço, com varanda, assente sobre muralha, que se ergueu em substituição da velha ribanceira, que por longos tempos existiu. Esta obra faz parte do arranjo geral da praça, foi concluída em 1864 e custou 3.208$400 réis. Numa lápida elucidativa, lê-se: «A Câmara Municipal mandou construir no ano de 1863». Por dois caminhos laterais, conduz à Rua da Procissão, que começou por chamar-se do Corpo de Deus e Cotovia ou simplesmente do Corpo de Deus. É hoje Cecílio de Sousa (desde 1926) a rua onde morou em 1869 o paciente bibliófilo Inocêncio Francisco da Silva, e se chamou desde 1756, ano em que, da nova Basílica Patriarcal, já implantada nas «Casas do Conde de Tarouca», saiu o grande cortejo religioso comemorativo do solene dia do Corpo de Deus.
Armando Serôdio,, in Lisboa de Antigamente

N.B. A Praça tem este nome em homenagem ao filho primogénito da Rainha D. Maria II, o futuro rei D. Pedro V — nasceu no Palácio das Necessidades, a 16 de Setembro de 1837, recebendo o nome de Pedro de Alcântara Maria Fernando Miguel Rafael Gonzaga Xavier João António Leopoldo Vítor Francisco de Assis Júlio Amélio; morrendo no mesmo local, a 11 de Novembro de 1861.
___________________________________________
Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. V, pp. 65-68, 1938.

No comments:

Post a Comment

Web Analytics