Sunday, 17 September 2017

Monumento do Senhor Roubado

A origem do nome Odivelas está como o nome de tantas outras freguesias e concelhos de Portugal, envolto numa lenda que tem perpassado pelos séculos. A propósito do nome desta cidade, conta-se que D. Dinis tinha o hábito de deslocar-se à noite a Odivelas ao Mosteiro de S. Dinis e certa noite, sabendo a rainha do que se passava resolveu esperá-lo e quando o rei fazia o seu percurso para o encontro, a rainha interpelou-o e eis que proferiu as seguintes palavras: "Ide vê-las senhor." Pelo que, segundo a lenda, a expressão "Ide vê-las", por evolução, terá dado o nome a Odivelas.


A 11 de Maio 1671 um roubo na Igreja de Odivelas dá origem a um belo monumento, o «Senhor Roubado», que alguns descrevem como sendo a primeira banda desenhada portuguesa, e que levanta muitas pistas sobre a forte presença da Inquisição na região.
O monumento do Senhor Roubado, tendo sido construído em três fases distintas, entre 1744 e 1747, correspondendo à última os azulejos da parede fundeira, que relatam toda a odisseia do roubo e a respectiva pena aplicada a António Ferreira.
A construção do primeiro padrão remonta a 1744 e deve-se à iniciativa de frei António dos Santos Prazeres que, às suas custas e beneficiando de diversas colaborações, decidiu substituir a antiga cruz, que assinalava o local onde haviam sido enterradas as partículas sagradas, por um cruzeiro e um pináculo. Logo depois, em 1745, foi decidido complementar a primeira intervenção, através de quatro colunas toscanas e respectiva abóbada, patrocinada pelo Cardeal Patriarca e paga com as esmolas dos fiéis. A mensagem iconográfica foi bastante alterada com esta intervenção, colocando a tónica na "exaltação da Fé na doutrina cristã como uma virtude da alma essencial para se chegar à Salvação". Contribuem para esta leitura a representação da pomba do Espírito Santo, do Crucifixo, símbolo de Jesus, e do vaso sagrado, símbolo de Cristo, aludindo, no seu conjunto, à Santíssima Trindade. Da mesma forma se compreendem as colunas toscanas evocativas dos quatro Evangelistas, que suportam a cobertura com a figura da Fé, bem como os fogaréus aos cantos, cuja chama é, também, representativa da Fé.
Para melhor ilustrar a antiga e curiosa história deste monumento laçamos mão da velhinha  revista científica de grande prestígio nacional e internacional, "O Arqueólogo Português” publicada em 1915, num capítulo intitulado «Azulejos datados». Reza assim:

À saída das portas de Carriche, junto da estrada municipal que leva a Odivelas, do lado esquerdo, encontra-se um pequeno espaço trapezoidal lajeado, delimitado no mais largo topo por um muro coberto de azulejos, e no outro topo e nos restantes lados por gradaria de ferro e um muro baixo. 
Ao centro, perto da parede azulejada, levanta-se um oratório de pedra, sob cuja abóbada crucial aguentada em quatro colunas de mármore claro se abriga uma imagem do crucificado. Do lado esquerdo, separados do oratório, um púlpito pequeno e um orifício circular aberto no lajedo, a modo de boca de poço; do lado direito apenas um marco de pedra, semelhante aos frades dos portões. 
É este o local conhecido pelo «Senhor Roubado» onde, em fins do séc. XVII se desenrolou uma série de acontecimentos, cuja descrição apresentará. bem claramente um dos aspectos do religiosismo da época.

Monumento do Senhor Roubado [c. 1903]
Rua Pedro Álvares Cabral; Rua do Senhor Roubado, Odivelas
Fotografia anónima, in Lisboa de Antigamente

Um tal António Ferreira, de Odivelas, trabalhador e moço de soldada, roubou a igreja do povo e foi esconder parte dos paramentos e vasos sagrados no lugar onde hoje se levanta o monumento e que ao tempo era um pedaço de vinha chamado os Caniços, a beira da estrada velha seguia para Lisboa. Descoberto o furto, preso e condenado o seu autor, a piedade dos fiéis fez crigir mais de meio século depois, aquela aparatosa fabrica, ainda hoje quási integralmente conservada. Comecemos a sua descrição.
No pedestal da cruz de pedra do oratório lêem-se primeiro os seguintes versos:
AQVI
OCCVLTOV A INGRATIDÃO
DO MAIOR ROVBO A INSOLÊNCIA
MAS LEVANTO V A CLEMENCIA
A MEMOBIA DO PERDÃO
 E logo por baixo: (na parte de trás do padrão, actualmente ocultada pela parede)
 ESTE PIADOZO PADRAO ⭙ COM ETERNA DOR SE LEA
AQVI VM ATROS LADRÃO ⭙ ÁS DUAS DA NOVTE E MEA
O CEV ENTERROV NO CHÃO
CAZO DE ODIVELLAS . AN . 1671
Ainda por baixo destas inscrições se encontra uma outra, que marca a época da construção do monumento, 1744. 
No muro azulejado, que forma o fundo do estranho monumento, abre-se ao centro uma porta hoje entaipada, em cuja verga se lê:
LOVVADO
SEIA O SANTÍSSIMO
SACRAMENTO E A TRINDADE
DA TERRA, JESVS, MARIA, JOZE
P. ALMAS P. N. A. M.
ESTA. O. FEITA T CÕ ESMOLAS DOS FIEIS. 1744.
o que nos indica com precisão a data dos azulejos que foram aplicados na obra. 
Aparecem divididos em quadros — como se de uma banda desenhada dos tempos modernos se tratasse —, seis de cada banda da porta, em duas ordens sobrepostas.
Sob eles, separado por uma linha de rectângulos amarelos, vem um lambris de outros azulejos de figura avulsa, com os cantos todos sobrecarregados de cinco pintas sôbre uma cruz riscada. Encostados as ombreiras da porta estão dois grandes painéis com figuras alegóricas de mulheres, semelhantes aos que vemos, por exemplo, nos ombros da capela da Senhora da Saúde, de Montemor de Loures.

Monumento do Senhor Roubado [c. 1900]
Rua Pedro Álvares Cabral; Rua do Senhor Roubado, Odivelas
 A parede desenvolve-se atrás do cruzeiro e apresenta-se totalmente decorada com azulejos
Fotografia anónima. in Lisboa de Antigamente

Como o artigo já vai longo, decidimos inserir aqui a chamada «quebra de página», caso queira continuar a ler a descrição de cada um dos doze quadros em azulejo clique em «ler mais [read more]»

Nos doze quadros citados contêm-se a história do roubo sacrílego, e lê-se sob cada um, no próprio azulejo, uma extensa nota explicativa; em quási todos há qualquer curiosidade etnográfica ou histórica digna de ser referida.
 «An.io F.ra estando ao jogo e vendo passar o samcristão da Freg." o seguiuo e ás escond.as se meteo na Ig.ra onde ficou. Cazo 1.º»
«António Ferreira estando ao jogo e vendo passar o sacristão da freguesia seguiu-o e às escondidas meteu-se na igreja onde ficou. Caso 1.º»

Numa só linha a inscrição deste curioso quadro, onde só divisam, um jôgo da bola com nove paulitos em posição, duas bolas correndo e figuras do jogadores, à vontade; (...) a bola tem de alcançar o paulito mais pequeno sem tombar o mais alto. O jogo com os nove paulitos conta-se por pontos, e cada um tem o seu valor especial. 
Este divertimento popular foi e é usado nas aldeias de toda a Europa, especialmente nos países germânicos, e conhecido desde tempos imemoriais, entrando em numerosas histórias, lendas e romances populares. Em Portugal tenho encontrado também com frequência referências a jogos de bola, dos mouros, 
Mas voltemos ao António Ferreira.
«Despio todas as Imagem.s dos S.tos e aromb.do a porta do sacrario furtou os vazos sagrados, e neste tempo cahio por t.ra sem sentidos. Cazo 2.º»
«Despiu todas as imagens dos santos e arrombando a porta do sacrário furtou os vasos sagrados, e neste tempo caiu por terra sem sentidos. Caso 2.º»

Numa só linha a inscrição. Um interior de igreja; vasos sagrados e paramentos entrouxados no chão; o ladrão, sobre o altar, está abrindo a porta do sacrário e sacando de lá a píxide.
«Sentindo gente entrouxou os vest.os das im.es e tom.do a estrada de Lx.ª no sitio cham.do os Caniços enterrou em hüa vinha os sagrados vazos. Cazo 3.º

«Sentindo gente entrouxou os vestidos das imagens e tomando a estrada de Lisboa no sítio chamado os Caniços, enterrou numa vinha os sagrados vasos. Caso 3.º»

O homem sai de dentro da igreja com um embrulho à cabeça; numa volta do caminho uma saloia vai passando com o seu burro carregado de trouxas. Parece um pouco contraditória tal vista com a inscrição do oratório, que diz o caso passado às duas e meia da noite.

«Continuando cam.º de Lx.ª meteo os vestidos das im.ges em hü caixão em caza de certa Mulher velha, Cazo 4.º»
«Continuando caminho de Lisboa, meteu os vestidos das imagens numcaixão em casa de certa mulher velha. Caso 4-º»

Um pitoresco aspecto da cidade anterior ao terremoto; portais largos, mansardas, agulhas poligonais, coruchéus, grimpas, bandeirolas de cataventos, riscando o céu.

«A tempo q a justiça por ordem de Elrrei D. Pedro, tirase devasa deste furto em Odivellas, se achava prez..to o sobredito An.io F.ra e dezia na prezença da m.ª. just,ª q quem o tinha feito merecia as mãos cortadas, Cazo 5.°»
«Ao tempo em que a justiça, por ordem de El-rei D. Pedro, tirasse devassa deste furto em Odivelas, se achava presente o sobredito António Ferreira e dizia, na presença da mesma justiça, que quem o tinha feito merecia as mãos cortadas. Caso 5.º»

Aqui aparece a curiosa gente da justiça do tempo de D. Pedro II: uns cavalheiros de véstia cintada, calções, meias de lã, sapatos de fivela, espadim no talabarte, belas capas de gola larga, varas da justiça na mão, lembrando todos vereadores ou juízes de irmandade em procissão solene.
«Foi o mesmo achado na cerca das Fieiras de Odivellas roubando huas galinhas e sendo agarrado vendo q, trazia ao peito hüa crus q examinada pellos parochos se conheceu ser dos vazos sagrados, entendera ser o do roubo. Cazo 6.ª»
«Foi o mesmo achado na cerca das freiras de Odivelas roubando umas galinhas e sendo agarrado, vendo que trazia ao peito uma cruz que examinada pelos párocos se conheceu ser dos vasos sagrados, entenderam ser o do roubo.Caso 6.º»

Curiosa psicologia a deste ladrão de cousas sagradas, que pendura ao peito uma prova do roubo e religiosamente assalta o galinheiro das freiras.

«Foi prezo p.la justiça sendo proguntado p.la mesma confessou q os v.os estavão em Lx.ª e na dita caza onde a justissa o levou. Cazo 7.°»
«Foi preso pela justiça e sendoperguntado pela mesma, confessou que os vestidos estavam em Lisboa e na dita casa, onde a justiça o levou. Caso 7.º»

O homem segue amarrado com cordas nos braços entre a escolta dos quadrilheiros, cujo armamento se resume nos espadins e nas varas, ambos mais de luxo do que de ofensa ou defesa.
«Confessou q. os vazos sagrados se achavão enterrados no sitio ja dito, onde sendo levado pela just.ª os acharão. Cazo 8.°»
«Confessou que os vasos sagrados se achavam enterradosno sítio já dito, onde sendo levado pela justiça, os acharam. Caso 8.º»

Nada de curioso no quadro; o criminoso segue com os beleguins.
«Veio o parrocho com.ta gente e debaixo do palio levarão o ssantissimo p.ª a Freg.ª Cazo 9.º»
«Veio o pároco com muita gente e debaixo do pálio levaram o Santíssimo para a Freguesia. Caso 9.º»

Sob o pálio, seguido de muito povo, o padre conduz a custódia.

«Voltarão os ministros com o delinq.te p.ª Lx.ª onde se lhe deo sentença de mãos cortadas. Cazo 10.º»
«Voltaram os ministros com o delinquente para Lisboa onde se lhe deu sentença de mãos cortadas. Caso 10.º»

Um aspecto da cidade. No fundo, à esquerda, há um palácio, cuja parte inferior aparece revestida de silharia saliente, lavrada em bicos de base quadrada e projecção de ogiva cruzada; uma casa dos bicos um pouco diversa da actual e que lembra os palácios napolitanos dos sécs. XVI e XVII.

«Foi levado ao lugar do suplicio e lhe cortar õ as maons. Cazo, I1.º»
«Foi levado ao lugar do suplício [Praça do Rocio desta cidade] e lhe cortaram as mãos. Caso 11.º»

Ao centro da praça [do Rossio] vê-se um estrado, e sobre ele um tronco de execuções, encostado a um mastro; à direita e à esquerda do tronco as figuras do paciente e do carrasco que levanta os braços ao alto, brandindo o cutelo. As figuras dos dois estão desgraçadamente já bastante estragadas, das pedradas que lhe atiram os garotos. 
Em volta do estrado, num conjunto pitoresco, o povo olha, e algum mais exaltado de entre os homens empurra com uma forquilha os molhos de faxinas que hão-de servir na cremação final. Uma escada encostada do lado direito diz-nos por onde subiram os protagonistas da cena. O estrado é tudo quanto há de mais simples, como cousa que breve será pasto de chamas. é um documento histórico tão precioso como o do jogo da bola, e de certo mais raro. 

«Foi morto de garrote e queimado. Cazo 12.º»
«Foi morto de garrote e queimado. Caso 12.º»

Assim acabou a última aventura de António Ferreira, perpetuada em azulejos que, se forem conservados, durarão mais que as folhas onde a narração do crime se espalhou na época. 
No quadro a mesma gente; no primeiro plano assiste uma mulher. O corpo do paciente, fortemente ligado por cordas ao mastro, começa a ser envolvido de labaredas que lambem todo o frágil edifício. Em Volta, a mesma praça irregular de há pouco, cheia de palácios, torres, campanários, agulhas, grimpas com cataventos. A Lisboa anterior ao terramoto presenciando uma espécie de auto de fé.

E parar rematar (que o artigo já vai longo) pode concluir-se que o monumento do Senhor Roubado constituía um lugar de paragem, refrescado pelas sombras e pela água fresca da fonte que ainda existe mas que já secou, onde a comunidade local, os saloios, parava e meditava sobre a sua própria Fé e sobre o acto de António Ferreira, cristão de nascença que havia pecado com grande gravidade. Estando na encruzilhada que o Senhor Roubado marcava, competia ao crente escolher a via do seu caminho, a do pecado e da vida fácil, ou por outro lado, a da fé na Igreja e a do trabalho (Ora et Lavora) que necessariamente levava à salvação. A encruzilhada «pode também revelar o sentimento de quem se encontra num cruzamento de caminhos e que tem de tomar uma orientação nova, decisiva. De acordo com o ensinamento simbólico de todas as tradições, parece obrigatória uma paragem na encruzilhada, com uma pausa de reflexão, para o recolhimento sagrado, e até mesmo para o sacrifício, antes de se continuar pelo caminho escolhido.» (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain)

______________________
Bibliografia
O Archeólogo português, Volumes 19-20, Museu Ethnográphico Português, 1915, CORREIA, Vergílio, Azulejos datados, p. 162-210. 1922.
 SIMÕES, J. M. dos Santos, Azulejaria em Portugal no século XVIII, 1979.
cm-odivelas.pt-

13 comments:

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  3. Mariana Leite Valença20 September 2017 at 11:17

    Magnifico post, muito informativo.

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  4. Desconhecia boa parte do historial deste monumento e resido a escassos quilómetros dele. Fabuloso artigo. Os meus parabéns.
    Sérgio Tomás

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  5. O nome desta Odivelas, tal como o da Odivelas no Alentejo tem a ver com o Ode (rio em árabe) e velas, que significa rio de águas revoltas ou turvas. A lenda do D. Dinis é arranjada pela via popular como muitas outras. Aliás o local já se chamada Odivelas muito antes do D. Dinis existir.

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  6. muito obrigado pelo belo artigo! Vou divulgar o q aprendi.

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  7. Também eu desconhecia e por lá tenho passado imensas vezes. Um dia destes vou lá parar.

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  8. Extraordinário documento histórico. Parabéns pelo excelente trabalho.
    Calado Durão

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  9. Bárbara Rodrigues4 May 2021 at 11:11

    Eu gosto imenso de história e sempre quis saber a origem do Sr Roubado, finalmente encontrei este documento sem ser necessário ir à junta ou procurar outros meios, trabalho muito bom. Os azulejos são lindíssimos! Da próxima vez que passar por lá, irei estar mais atenta. Parabéns e obrigada.

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  10. Interessante explicação para um topónimo tão inusitado. Obrigado pela partilha.

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  11. Magnifico trabalho, obrigado pela informação. Ajudou imenso na publicação que fiz.
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