Sunday, 20 August 2017

Profissões de antanho: o calceteiro, uma arte a preto e branco


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
      Vibra uma imensa claridade crua.
      De cócoras, em linha, os calceteiros,
      Com lentidão, terrosos e grosseiros,
      Calçam de lado a lado a longa rua.
Como as elevações secaram do relento,
      E o descoberto sol abafa e cria!
      A frialdade exige o movimento;
      E as poças de água, como em chão vidrento,
      Reflectem a molhada casaria.

Avenida da Liberdade [1907] 
De cócoras. em linha, os  calceteiros
Em segundo plano vê-se o Palacete Seixas
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente
Avenida da Liberdade [1907]
E o ferro e a pedra — que união sonora!

Em último plano vê-se a «Rotunda», actual Praça do  do Marquês de Pombal
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
      Disseminadas, gritam as peixeiras;
      Luzem, aquecem na manhã bonita,
      Uns barracões de gente pobrezita
      E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
      Tomam por outra parte os viandantes;
      E o ferro e a pedra — que união sonora! —
      Retinem alto pelo espaço fora,
      Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Praça Dom João da Câmara [1907]
Com lentidão, terrosos e grosseiros
Ao fundo, à esq., o "Café Suisso" e à dir. o afamado "Café Martinho"
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
      Cuja coluna nunca se endireita,
      Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
      Pesam enormemente os grossos maços,
      Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
      Que espessos forros! Numa das regueiras
      Acamam-se as japonas, os coletes;
      E eles descalçam com os picaretes,
      Que ferem lume sobre pederneiras.

Praça Dom João da Câmara [1907]
Pesam enormemente os grossos maços
Com que outros batem a calçada feita

Ao fundo, à esq., o "Café Suisso", a Rua 1.º de Dezembro e a Praça dos Restauradores
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

E nesse rude mês, que não consente as flores,
      Fundeiam, como esquadra em fria paz,
      As árvores despidas. Sóbrias cores!
      Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
      Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio — o grande agente! —
      Carros de mão, que chiam carregados,
      Conduzem saibro, vagarosamente;
      Vê-se a cidade, mercantil, contente:
      Madeiras, águas, multidões, telhados!

Avenida da Liberdade [1907]
Carros de mão, que chiam carregados,
Conduzem saibro, vagarosamente

Ao fundo vê-se a «cavalariça», do Palacete Sabrosa na esquina com a Av. Duque de Loulé
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
      Em arco, sem as nuvens flutuantes,
      O céu renova a tinta corredia;
      E os charcos brilham tanto, que eu diria
      Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
      Eu tudo encontro alegremente exacto.
      Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
      E tangem-me, excitados, sacudidos,
      O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Avenida da Liberdade [1907]
Que vida tão custosa! Que diabo!

Ao fundo vê-se o Palacete Sabrosa
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente
Avenida da Liberdade [1907]
Lavo, refresco, limpo os meus sentidos

Em último plano vê-se a «Rotunda», actual Praça  do Marquês de Pombal e o começo da Av. Fontes Pereira de Melo com o Palacete Ramires.
  Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
      De tão lavada e igual temperatura!
      Os ares, o caminho, a luz reagem;
      Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;
      Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
      Dois assobiam, altas as marretas
      Possantes, grossas, temperadas de aço;
      E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
      E manso, tira o nível das valetas.

Praça Dom João da Câmara [1907]
E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
E manso, tira o nível das valetas

Ao fundo, a Rua 1.º de Dezembro, o "Café Suisso"  e o "Café Martinho".
  Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
      Que vida tão custosa! Que diabo!
      E os cavadores pousam as enxadas,
      E cospem nas calosas mãos gretadas,
      Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
      Uma bandeira penso que transluz!
      Com ela sofres, bebes, agonizas;
      Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
      E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

Praça do Marquês de Pombal [1933]
E eles descalçam com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras

Ao fundo, o estaleiro do Monumento ao Marquês de Pombal e o antigo Palacete Lara (depois Clube Militar Naval).
Ferreira da Cunhal, in Lisboa de Antigamente

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
      Surge um perfil direito que se aguça;
      E ar matinal de quem saiu da toca,
      Uma figura fina, desemboca,
      Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
      E a quem, à noite na plateia, atraio
      Os olhos lisos como polimento!
      Com seu rostinho estreito, friorento,
      Caminha agora para o seu ensaio.

Rua Doutor Nicolau de Bettencourt [1957]
E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços

Muro do Parque José Maria Eugénio, actual Fundação Gulbenkiam
Judah Benoliel, in Lisboa de Antigamente

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
      Como lajões. Os bons trabalhadores!
      Os filhos das lezírias, dos montados:
      Os das planícies, altos, aprumados;
      Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
      Furtiva a tiritar em suas peles,
      Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
      Neste Dezembro enérgico, sucinto,
      E nestes sítios suburbanos, reles!

Avenida da Liberdade [entre 1906 e 1908]
Os calceteiros usam moldes para marcar as zonas de diferentes cores, repetindo esses motivos em sequência linear (frisos) ou nas duas dimensões do plano (padrões).
Charles Chusseau-Flaviens, in Lisboa de Antigamente
*Local da fotografia não  está identificado no arquivo

Como animais comuns, que uma picada esquente,
      Eles, bovinos, másculos, ossudos,
      Encaram-na sanguínea, brutamente:
      E ela vacila, hesita, impaciente
      Sobre as botinhas de tacões agudos.
Porém, desempenhando o seu papel na peça,
      Sem que inda o público a passagem abra,
      O demonico arrisca-se, atravessa
      Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
      Com seus pezinhos rápidos, de cabra!
Lisboa, Inverno de 1878
Cesário Verde (1855-1886)  in «Cristalizações»


Os calceteiros tiram partido do sistema de diáclases do calcário para, com o auxílio de um martelo, fazerem pequenos ajustes na forma da pedra. As diáclases ocorrem em todos os tipos de rochas, em particular nas rochas duras, e não são mais do que fracturas ao longo das quais não existiu movimento considerável. Estas fracturas formam-se por ruptura, como resultado de um campo de tensões aplicado ao material rochoso. Intersectam-se em diversas direcções, sendo algumas principais, originando uma rede de fracturas que facilita a separação da rocha em blocos. 

Praça Marquês de Pombal [c. 1914]
Estes mosaicos (já cortados) situavam-se entre as avenidas Duque de Loulé (em último plano à esq.) e da Liberdade
Charles Chusseau-Flaviens, in Lisboa de Antigamente
*Local das fotografias não  está identificado no arquivo

Os calceteiros usam moldes para marcar as zonas de diferentes cores, repetindo esses motivos em sequência linear (frisos) ou nas duas dimensões do plano (padrões). A geometria do séc. XX prova que há um número limitado de simetrias possíveis no plano: 7 para os frisos e 17 para os padrões. Um trabalho de jovens estudantes portugueses, incentivado pela Sociedade Portuguesa de Matemática, registou nas calçadas de Lisboa 5 tipos de frisos e 11 tipos de padrões. Está em curso um projecto entre a C.M.L. e a S.P.M. que pretende aumentar a riqueza geométrica da calçada de Lisboa, completando-a com os tipos de simetrias em falta.

6 comments:

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  2. Awesome post, congrats!

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  4. CALCETEIRO

    ( Homenagem ao meu pai falecido em 2009)


    Tuas mãos rudes
    calejadas
    trilhadas
    magoadas
    pelo frio, chuva ou sol ardente
    De pedras brutas
    Calcário, granito
    brancas, pretas, outras cores
    tuas mãos delas fazia
    grinaldas de belas flores
    barcos a remos, caravelas
    ziguezagues ondulantes
    e tudo ficava bonito
    Com tua arte e alegria
    fazias o chão que pisamos
    aquele que nem olhamos
    e tem nele tanta magia.

    Até tu próprio dizias
    que a arte é alegria.

    Maria Antonieta Oliveira
    2º prémio no 1º concurso de poesia da Associação Cultural Draca – 2011,
    sobre o tema “ a arte é alegria”




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  5. Grata pela leitura e comentário

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