Sunday 14 July 2019

Os Fiéis de Deus

Em 1902, o olisipógrafo Júlio de Castilho, adiantava a razão da origem deste curioso topónimo do seguinte modo: «A travessa dos Fieis de Deus, essa é toda mística. Tira talvez origem de um antigo uso, que o Elucidário de Viterbo nos denúncia: montes de pedras soltas arrojadas a uma e uma pelos passageiros nas encruzilhadas, ao pé de alguma Cruz que ali houvesse, e em honra dela; resto de hábitos pagãos transformados pelo Cristianismo. Parecia aquilo um modo de provar que os fieis não esqueciam o seu Deus, pois erguiam, a pouco e pouco, junto ao símbolo da Preempção, aqueles rudes calcários, comemorativos do alcantilado teatro da Paixão de Cristo.
A tais acervos de cascalho chamava o povo «Fiéis de Deus», pela fidelidade dos obscuros e incógnitos autores. E é para notar que a ermida de Nossa Senhora da Ajuda dos Fieis de Deus, que se acha ainda hoje no seu lugar primitivo, foi edificada numa encruzilhada de dois caminhos; a actual Travessa dos Fiéis de Deus, e a actual Rua dos Caetanos.

Travessa dos Fiéis de Deus [1930] 
Perspectiva tomada da Rua de O Século
[Ermida (de Nossa Senhora da Ajuda) dos Fiéis de Deus]

Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Os «fiéis de Deus» eram pedrinhas — afirma por seu turno Norberto de Araújo. Pedrinhas de piedade. Não chegavam a ser uma lágrima. Queriam ser um Padre-Nosso. Quando era justiçado um homem, não o enterravam no adro sacrossanto das igrejas. A lei punha-o fora do seio de Deus. Abriam-lhe a cova numa encruzilhada. Os que passavam atiravam-lhe uma pedra e uma oração pelo «fiel de Deus». Eis o costume caritativo de há muitos séculos.
E aí está a única ermida do Bairro Alto, neste buliçoso sítio onde muitas outras existiram, e que esqueceram. Aí fica ela ao cabo do enfiamento de uma pitoresca travessa, ainda de casinhas cor-de-rosa, de fundo setecentista, perto das Salgadeiras, da Espera, das Mercês, da Trombeta. 

 Ermida (de Nossa Senhora da Ajuda) dos Fiéis de Deus] [1945] 
Travessa dos Fiéis de Deus, 111; Rua dos Caetanos
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente

Data a Ermida de 1551, dedicada por um Afonso Brás às Almas do Purgatório. É pequena e pobre, com um arzinho de ingenuidade antiga. Nela habitou um dos cinco homens que, na cidade, tinham o ofício de recolher as crianças perdidas das mães: também foi um refúgio, os Fiéis de Deus.
Na Ermidinha entravam muitas vezes os calafates da Boavista, os brigões da Espera, os fidalgos de Soure, os frades eruditos de S. Caetano, as colarejas da Atalaia. Agora não entra quase ninguém. [...]
É simplesmente a pedrinha anónima, distraída, humilde dos Fiéis de Deus.
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Bibliografia
CASTILHO, Júlio de, Lisboa antiga, Vol, 1, p. 102, 1902.
ARAÚJO, Norberto de, Legendas de Lisboa, pp. 202-203, 1943.

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