O Café Gelo, restaurado em 1939, data de 1883, principiou por ser cervejaria [Botequim do Gonzaga, «um roliço botequineiro do Rocio» (Palmeirim, 1891)]; na renovação foi colocado na sala sobre o Rossio, num ângulo de parede, um duplo baixo relevo o «Vinho» e a «Cerveja», de A. Mesquita, e nas paredes das duas salas vários quadros de Albertino. [Araújo, 1939]
Foi no despontar do novo século — diz M. Tavares Dias — que os cafés da Baixa e do Chiado assumiram de vez a sua vocação histórica. Se o Romantismo tivera como tribuna e símbolo o Marrare do Polimento, se geração de 70 resumira o esplendor da cidade culta às mesas do célebre Martinho, a nova centúria viria justapor uma aura de lenda a qualquer local onde fosse exercida a venda de café à chávena. Sobre um tampo de mármore e devidamente acompanhado pelo refastelo da cadeira e da leitura do jornal, qualquer mistura fazia a fama de uma casa. Em breve se deram conta disso os proprietários da Brasileira que, fundada em 1905, começara por vender lotes de café ao balcão. O negócio impôs, dentro de meses, instalação de mesas e cadeiras. O Chiado elegante (agora muito mais comercial do que em 1850) exigia paradouro para tertúlia e não um mero posto de venda. E a Brasileira transformar-se-ia na principal herdeira da fama do Marrare e do Martinho. Mas muitos foram os estabelecimentos célebres ao longo do século XX.
O Café do Gelo, nos números 64-65 do Rossio, possuía já velha reputação revolucionária quando, em 1907, foi ponto de encontro dos estudantes duma célebre greve académica — cujo extraordinário impacto fazia já prever os acontecimentos políticos dos anos seguintes. E foi dali que, segundo muitos testemunhos, saíram Alfredo Costa e Manuel Buíça na primeira manhã de Fevereiro de 1908, direitos ao Tenreiro do Paço. para dispararem sobre a família real. A mesa do Buiça era conhecida no Gelo e Raul Brandão fala dela nas suas Memórias. Dizia-se também que a arma que Buiça usou no regicídio — uma Winchester número 2131 — fora comprada mesmo ao pé do café, na Espingardaria A. Montez do Largo Camões (Praça D. João da Câmara).
A fama revolucionária do Café do Gelo continuou pelas décadas adiante. Entre 1954 e 1955 beneficiou de uma remodelação completa, com substituição das antigas portas ao estilo oitocentista pela fachada envidraçada que ainda podemos ver no local. Foi também nessa altura que passou a ser conhecido apenas por Café Gelo, perdida que estava a necessidade de o designar de acordo com uma especialização do serviço. Em 1950 — plena época das carripanas de "esquimós" — os gelados não eram já, de modo algum, coisa considerada rara e exclusiva de certos cafés. Após estas obras, o estabelecimento transformar-se-ia em centro de reunião para os surrealistas cuja tertúlia ficou conhecida como «grupo do Gelo».[...]
Café do Gelo [1961] Praça D. Pedro IV, 64-65 A nova fachada com o letreiro luminoso. Artur João Goulart. in Lisboa de Antigamente |
Em 1962, durante a manifestação proibida do Primeiro de Maio, a polícia de choque estreou o depois famigerado «carro da água» no Rossio, inundando tudo de tinta azul. Foi uma das manifestações mais violentas de oposição ao regime de Salazar. Muitas montras da Baixa ficaram reduzidas a cacos, empedrado e grades do Rossio serviram de armas defensivas, houve vários feridos e um morto. Como nos tempos da Maria da Fonte ou dos comícios anti-monárquicos, a Guarda Republicana desceu do Carmo para ajudar a controlar a situação. Dentro do Gelo, escudados pelas mesas, alguns clientes habituais decidiram munir-se dos açucareiros de metal e arremessá-los, porta fora, à polícia. No dia seguinte a PIDE mandou averiguar junto do proprietário quem teriam sido os causadores de tais desacatos. Na sequência duma recusa de denúncia, houve a ameaça: o café fecharia se voltasse a abrigar gente suspeita. A tertúlia do Gelo ter-se-á então deslocado para norte, em direcção ao Palladium e a território mais seguro.
Nos seus últimos anos (décadas de 70 e de 80), pouco ou nada sobrava já do antigo Café do Gelo. Mantinha o nome evocativo, mas a gerência tinha transformado a sala num snack-bar, estilo come-em-pé, com fabrico de pastelaria. O néon com a palavra «Gelo» foi finalmente apeado da fachada no início da década de 90. Hoje [1999], no mesmo lugar, pode ler-se a designação do fast-food em que se transformou: Abracadabra.
Nota(s): Dizem-nos, entretanto, que em 2007 o fast-food encerrou e o Café Gelo recuperou o nome e
reabriu completamente remodelado.
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Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p. 70, 1939.
DIAS, Marina Tavares, Os Cafés de Lisboa, pp. 93-95, 1999.
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