Do lado ocidental da actual Avenida da Liberdade — situado na esquina da antiga Travessa da Vacas (hoje «do Salitre») com a Rua do Salitre (antes «Calçada do») — erguia-se o antigo Circo Price [vd. mapa], fundado em 1860 pelo inglês Thomas Price e que teve grande aura como um dos divertimentos predilectos de Lisboa. Dele contaram histórias autores afamados. Aqui damos nota de alguns deles.
E em 1880 já não havia nada disto; teatros, praças, circos, sumiram-se.¹E o Circo Price — interrogarás tu, Dilecto, que tanto tens ouvido falar dele? Ora eu te digo, em poucas palavras.O Circo Price foi vizinho da velha Praça taurina [do Salitre], mas muito posterior. Assentava no eixo da Avenida [da Liberdade] de hoje, pouco mais ou menos onde está o monumento aos Mortos da Guerra.Em parte do terreno da horta dos frades capuchos, e que êles em seu tempo traziam de renda, fêz erguer o inglês Tomás Price o seu Circo, inaugurado em 11 de Novembro de 1860, o que contribuiu para liquidar o Circo velho do Salitre. Deu espectáculos de «cavalinhos» [nome pelo qual o povo conhecia esta casa de espectáculos], de exposição de feras, e até deliciou o público com zarzuela, e da melhor de Espanha. Em 1875 o Circo Price foi hipotecado, e desapareceu, mas o simpático inglês não desanimou e instalou-se no abandonado Circo vizinho, o «do Salitre», que, assim, reviveu um tempo.
Era em 1867. Frente a frente, as Variedades [Theatro das] e o Circo Price alinhavam os seus bicos de gás festeiros, a que as vergastadas do noroeste impunham um tremelilhar inquieto. Quinta-feira — noite de cabriolas com sobrescrito à fina sociedade. Enchente certa no Circo. De cada lado do portal da entrada, um semicírculo compacto de gente se agitava, tendo por centro cada um seu postigo de bilheteiro, e ambos por igual colados, premidos sofregamente contra a parede verdoenga do barracão, e arredondando pela rua fora, numa irregularidade gritada e confusa, a toda a largura do macadame. Tudo queria bilhete. Havia chapeus tombados, ombros que penetravam á cunha, braços arpoando vigorosamente os alizares castanhos dos postigos, mãos retirando triunfantes, muito erguidas, com um papelinho azul ao vento.²
Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre e pasmada, apinhava-se até ás ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os requebros do palhaço [vd. N.B.], rebocado de caio e vermelhão, que tocava nos pésinhos duma voltigeuse e lambia os dedos, de olhos em alvo, num gosto de mel... Descansando na sela larga de xairel dourado, a criatura, magrinha e séria, com flores nas tranças, dava a volta devagar, ao passo dum cavalo branco, que mordia o freio, levado à mão por um estribeiro; e pela arena o palhaço lambão e néscio acompanhava-a, com as mãos ambas apertadas ao coração, numa suplica babosa, rebolando languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calça listrada de ouro, empurrava-o, num arremedo de ciúmes; e o palhaço caia, estatelado, com um estoiro de nádegas, entre os risos das crianças e os rantantans da charanga. O calor sufocava; e as fumaraças de charuto, subindo sem cessar, faziam uma neva onde tremiam as chamas largas do gás. Carlos, incomodado, abalou.— Espera ao menos para ver a mulher dos crocodilos! gritou ainda o Taveira.— Não posso, cheira mal, morro!³[...]— Então de onde vem, de onde vem?Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da pipa.— A pipa tem muita graça! Muita graça!⁴
[Leopoldina] Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma
carteirinha, chaves, uma caixinha de pó-de-arroz; mas encontrou apenas
um programa do Price.⁴
Programa do Circo Price [1867] Calçado do Salitre, esquina da Travesso das Vacas, foi demolido para abertura da Avenida da Liberdade em 1880 |
Do circo do Price lembro-me muito bem — diz Matos Sequeira — , como da figura do Price, sentado
de chapeu alto, no pequeno salão precedido do estreito corredor de
entrada, distribuindo programas do alto do seu estrado.⁵
N.B. O palhaço a que Eça se refere em «Os Maias» e na «brincadeira da pipa» em «O Primo Basílo»(³,⁴), era, com grande probabilidade, o famoso Whyttoine, um dos mais aclamados clowns do panorama artístico do séc. XIX, largamente elogiado n'A Illustração portugueza de 1885:
«No Circo Price existia porém uma individualidade unica, especial, sui generis, que todos conheciam, applaudiam, estimavam e respeitavam — o velho Whyttoine, esse clown que chegou até nossos dias como um symbolo de bondade, trabalho e honradez, e como uma mimosa recordação da nossa descuidada infancia.
Whyttoine era a nota alegre do Circo Price. Perante a sua veia comica abatiam-se humilhadas as mais austeras gravidades e sorumbaticos caracteres. A scena da pipa e o morto e o viro não tornaram a ter outro interprete que melhor as desempenhasse.»
______________________________________________________«No Circo Price existia porém uma individualidade unica, especial, sui generis, que todos conheciam, applaudiam, estimavam e respeitavam — o velho Whyttoine, esse clown que chegou até nossos dias como um symbolo de bondade, trabalho e honradez, e como uma mimosa recordação da nossa descuidada infancia.
Whyttoine era a nota alegre do Circo Price. Perante a sua veia comica abatiam-se humilhadas as mais austeras gravidades e sorumbaticos caracteres. A scena da pipa e o morto e o viro não tornaram a ter outro interprete que melhor as desempenhasse.»
Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XIV, p. 34.
² Abel Botelho. O Barão de Lavos, 1908.
³ QUEIROZ, Eça de, Os Maias,1888.
³ idem, O Primo Basílio, 1878.
⁵ MATOS SEQUEIRA, Gustavo de, Depois do terramoto: subsídios para a história dos bairros ocidentais de Lisboa, 1967.
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