Lisboa tem o privilégio de possuir os mais artistas engraxadores do mundo — escreve Maria Archer num artigo publicado em 1945 na Revista municipal de Lisboa. A fama duns sapatos lustrados em Lisboa dá que falar. Sei dum escritor espanhol que passa horas nas praças, a rondar Os nossos engraxadores ambulantes, de tal forma se extasia com a perfeição e o ardor do seu trabalho. Dir-se-ia que os estuda, que os admira. Um dia confidenciou-me o resultado das suas observações:
— Nada mas que esto... Les gusta, a ellos hacerlos luzir.
Profissões de antanho: o engraxador [1977] Largo de S. Domingos Abrigos destinados aos engraxadores, instalados por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa: ao fundo, observa-se o Palácio Almada. Fernando Gonçalves, in Lisboa de Antigamente |
That is the question... É que o engraxador de Lisboa gosta do seu trabalho e um trabalho de que se gosta faz-se com mira na obra prima. Ele gosta de ver o velho sapato enlameado, poeirento, desboto, retomar cor e lustro sob a aguada colorida de anilina e a untadela de pomada. Depois, com pano e escova, apura-se em realçar as graças do cabedal rejuvenescido. A escova e o pano macio, felpudo, giram lestos nas suas mãos e o sapato lustrado já reflecte a luz como um espelho, já se destaca, sabre o basalto escuro da calçada ou no mármore britado dos passeios, como coisa nova, bonita, agradável de ver e de usar.
Profissões de antanho: o engraxador [1926] Rua de S. Marta junto ao Convento de Santa Joana (Princesa) Pequenos engraxadores, à saída da Esquadra da Polícia Cívica de Lisboa (actual PSP), depois de assistirem a uma palestra sobre comportamento cívico dada pelo comandante Ferreira do Amaral.: ao fundo, o Palácio Almada. Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente |
O engraxador ambulante, de Lisboa, é pobre. Vive mal da sua profissão mas mesmo assim, gosta dela porque ela o deixa viver na doçura da rua, em contacto directo com o grande teatro popular da rua. E gosta dela porque ela o deixa ser livre, viver sem patrão, sem horário de trabalho, sem regulamentos. Ordens, imposições, só as recebe da necessidade. A fantasia pode andar com o artista que ninguém a afugenta da sua beira. Vem o domingo... Domingo, dia de catitismo para o homem da rua, já se sabe que rende ao engraxador. Mas se há, nesse domingo, desafio de nomeada, quem é que pensa nos cobres? O engraxador gosta da «bola». Aperta um furo no cinto e compra o bilhete do «peão», que a vida são dois dias e o Benfica é merecedor, isso é que é... ==
Profissões de antanho: o engraxador [1911] Arcadas da Praça do Comércio Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente |
Bibliografia
ARCHER , Maria, Revista municipal Lisboa, 1945.
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