Sunday, 2 March 2025

Do Passeio à Avenida

Demolido o Passeio Público em 1886 para dar lugar à abertura da Avenida da Liberdade, esta foi durante algum tempo o espaço de passeio da pequena burguesia lisboeta e da “gente operária endomingada"


Em 1910, André Brun descreve desdenhosamente a frequência da Avenida nestes termos: “Ao domingo a Avenida é a montra de um bazar de quinquilharias baratas. Todo o alfacinha de meia-tigela que não tem vintém para ir aos divertimentos caros que a cidade oferece {...] aflui à Avenida”. Uns vão para o pavilhão da música, outros para o quiosque dos refrescos. Quem tem “um vintenzinho para a cadeira fica de um lado; a pelintragem bravia, do outro. Quando acaba o fungagá, a gente das cadeiras desce a Avenida com toda a coragem. A outra, que está de pé em volta do coreto, se a desce é pelas ruas laterais. Pelo meio não se atreve. Imaginem: gente operária endomingada, muita soldadesca que vem atrás da banda, caixeirada de meia tigela...". Apenas num talhão correspondente ao Teatro Avenida se pode encontrar alguém do Carnet Mondain - registo azul (Brun, 1999, p. 66-73). Se a pequena e média burguesia — homens e mulheres — passeava na Avenida, os trabalhadores e operários dos bairros populares optavam pelas hortas, como acima se referiu, ficavam em casa, ou iam aos espectáculos populares como a tourada, mas sozinhos, sem as mulheres. 

Avenida da Liberdade (N-S )em terra batida |1905|
João Ribeiro Cristino da Silva, litografia colorida,
Suplemento ao o° 488 da Mala da Europa Museu de Lisboa, in Lisboa de Antigamente

Ramalho Ortigão retratou assim essa diferença no uso da cidade e dos seus diverti mentos entre os grupos sociais: “Ide à Baixa ao domingo à tarde. Encontrareis os prédios fechados e desertos: as mulheres dos lojistas foram passear com os maridos. Ide aos bairros de Alcântara ou à Mouraria nos mesmos dias: todas as mulheres estão nas suas pequenas casas, às janelas ou às portas, numa inação desconsolada e abatida. E não encontrareis um homem. Vede pelo contrário os divertimentos populares a trincheira do lado sol na praça de touros: não há uma mulher.” (Ortigão, 1992, p. 143-144). É também na segunda metade do século XIX, ainda que com raízes no século anterior, que um outro tipo de passeio associado à vida de café, aos teatros públicos e ao novo comércio de lojas se instala. Ia-se apanhar o fresco do entardecer ou da noite, e admiravam-se as fachadas, as luzes e o movimento dos cafés e teatros, as montras das lojas com as suas mercadorias (Lousada, 2004, p. 104-5).

 

Avenida da liberdade (S-N) |post. 1886|
Robert Kãmmere,, in Lisboa de Antigamente

N'um claro espaço rasgado, onde Carlos deixara o Passeio Público pacato e frondoso —  um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço côr d'assucar na vibração fina da luz de Inverno: e os largos globos dos candieiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os pesados prédios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aquelles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as familias que outr'ora se immobilisavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindo a Banda, com casimiras e sêdas, no catitismo domingueiro.==
(Eça de Queiroz, ln Os Maias, 1888)

 

O Passeio Público de Lisboa (entrada S.) |c. 1843|
Com o início da construção em 1764, o Passeio foi traço do arq. Reinaldo Manuel e conheceu durante os seus cento e dezoito anos de vida duas épocas claramente distintas. até 1836, o Passeio era unicamente um bosque, ladeado de altos muros revestidos pela parte interior de buxo e de louro, com quinze janelas de grade de cada lado, que lhe davam o resguardo necessário e de tradição.
Litografia colorida de Legrand, (Lith. de M.el Luiz),, in Lisboa de Antigamente

1 comment:

  1. Almir Ferreira Oliveira.2 March 2025 at 18:27

    Relíquia de gravuras, parabéns pela postagem

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