Sunday, 18 February 2018

Av. Almirante Reis, 22: edifício Bezelga

As chamas devoraram há dias o prédio de gaveto da  Avenida Almirante com a Rua Andrade.  Construido nos alvores do século XX «é o único edifício cuja cantaria foi toda talhada para albergar uma farmácia, com símbolos como o caduceu, a cobra, a taça, etc. Único exemplar em Lisboa e, provavelmente, em todo o país. É uma maravilha lavrada em pedra.» (Dias;1998). Aqui estava estabelecida a antiga farmácia do Bezelga, um republicano propagandista e fundador de jornais, que viveria no terceiro andar do mesmo edifício João Bezelga, «que foi o maior farmacêutico da cidade», tinha também veia de poeta, como atesta este excerto de uma conferencia  feita pelo  Dr.  Eduardo da  Silva  Neves na  sede dos «Amigos de Lisboa», em  4  de  Março  de  1950:

Avenida Almirante Reis [1965]
Rua Andrade; os adornos do topo do prédio foram apeados e vendidos por volta da década de 1960/70; obras do Metropolitano.
Artur Goulart, in Lisboa de Antigamente

Mais tarde, no cimo da subida, já na nova avenida, primeiro dos Anjos, depois de D. Amélia e agora Almirante Reis, o grande prédio, tendo uma enorme palmeira com urna cobra enrolada no tronco, emblema de farmácia, propriedade do farmacêutico João Bezelga, cujas excentricidades e anedotas ainda hoje são lembradas. Era este farmacêutico autor dum livro de versos «As canções da Arada», publicado em 1903 e dedicado ao Prof. Custódio Cabeça. Desse livro não resisto a reproduzir aqui os seus primeiros versos, de mais a mais porque têm sabor lisboeta, visto terem sido feitos a Santo António e para as festas da noite do mesmo Santo na demolida Praça da Figueira: 

Milagroso Santo António
Fazei-me o milagre a mim,
Trazei-me de lá dos Céus
Um bigodinho... sim?

Não quero com grandes barbas
Causar medo à namorada,
Não quero que me confundam
Com algum ladrão de estrada.

Não quero pêra comprida
Que me assemelhe a algum bode,
Não quero mosca atrevida,
O que eu quero... é um bigode.

Avenida Almirante Reis [1965]
Prédio da antiga Farmácia Bezelga depois transformada no bar As Palmeiras dos Anjos, como se pode ler na bandeira de porta no nº 22. Observe-se os símbolos como o caduceue a cobra.
Artur Goulart, in Lisboa de Antigamente

Arada era a terra do Poeta, no concelho de Ovar. 
A farmácia foi primitivamente na Rua Andrade quase junto à Rua Maria da Fonte, onde se reunia curiosa tertúlia, que deu origem a alguns jornais charadísticos, humorísticos e literários, tendo sido um deles: «Economia», fundado pelo Dr. Forte de Lemos, que possuiu consultório por cima da Farmácia Bezelga, em que colaboraram Raimundo Alves, José Pedro do Carmo, José Gomes Ventura, João Bezelga, o poeta António Correia de Oliveira, etc. Promoveu vários concursos e campeonatos charadísticos, onde colaboraram os melhores charadistas do tempo. Foi morrer à Rua Pascoal de Melo, residência do fundador. Um outro foi o «Boémio», humorístico e teatral, onde Bezelga publicou uma quadra que deu larga polémica com «Caracoles» — Cruz Moreira — director de «Os Ridículos»:
Quem o seu fósforo requeira
Vá ao Bombarda a Rilhafoles
Que o não tem Cruz Moreira
Na caixa do... Caracoles.
Entre as numerosas anedotas verídicas, possíveis de contar, pois algumas são demasiado realistas, para se reproduzirem, conta-se a passada com um filho menor de um conhecido revolucionário do 5 de Outubro, então morador nas cercanias, e logo após a mudança do regime, e quando da passagem de réis para centavos
O pequeno apareceu na farmácia com urna moeda de cinco tostões, a pedir malvas, e trazia num papel escrito «40 de malvas», o vulgar pataco ou 40 réis. Bezelga, atendendo a que o remédio era para um adepto da República nascente, interpretou logo por 40 centavos e forneceu ao pequeno um enorme cartucho com um cruzado de malvas, e de tal se pagou.
Não tardou que o Pai, exasperado ante a quantidade das ervas e o exagerado do preço (um cruzado ao tempo era dinheiro) viesse vociferar ante o impassível farmacêutico, que, com os óculos a descerem pelo nariz e a olhar por cima dos vidros, ia dizendo: — Não se trocam medicamentos, quarenta só pode ser centavos, porque, segundo a lei, já não há réis». O freguês, exaltado, bate rio balcão com uma forte bengala e, dizendo uma frase sonora, atira para dentro do balcão o pacote das malvas. Na descida da rampa para o Intendente, ouvindo chamar, volta-se, e vê, sorridente, no portal, o nosso farmacêutico poeta, que curvando-se e acentuando as palavras, diz:«Obrigado, ficaram os. 40 centavos e ... mais as malvas !» 
Num dos seus versos disse algures, definindo um vate: «Poeta é dementeque sofre e que sente» ... E o infeliz, que poetou, veio a morrer louco, no Telhal. ==

Avenida D. Amélia, actual Av. Almirante Reis [c. 1900]
À direita na embocadura da Rua Andrade com Rua dos Anjos, vê-se o prédio da Farmácia Bezelga ainda em obra; do lado esquerdo ainda se observam os escombros da antiga Igreja dos Anjos.

Machado & Souza,
in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
DIAS, M. Tavares, Lisboa Desaparecida, vol. 2, 1998.
Olisipo: boletim do Grupo "Amigos de Lisboa", vol.13, 1950.

3 comments:

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