Sunday 30 June 2019

Convento e Igreja do «Corpus Christi», aos Fanqueiros

Ora aqui chegamos ao antigo Largo dos Torneiros, — recorda-nos Norberto de Araújo —  que se sucedeu na designação oral de uma antiga Rua dos Torneiros ou da Tornoaria e que, antes do Terramoto, é claro, ia dar ao Largo de S. Nicolau. Vês êste edifício, bem curioso, da esquina, propriedade de rendimento, com lojas de comércio, de um exterior manifesto de antiga Igreja ou Casa Religiosa?

Pois foi aqui, com efeito, um Convento: o do Corpus Christi, ou dos frades torneiros, nome que a êles derivou do sítio onde se arruavam os homens dos tornos.

 

O Convento do Corpus Christi pertencia aos religiosos carmelitas descalços de Santo Alberto, e foi construído em 1648 a expensas da Rainha D. Luiza de Gusmão, em sinal de agradecimento per o Rei, seu marido, haver escapado de um atentado que — diz-se — neste sitio se projectou contra ele. O Terramoto destruiu-o; foi reedificado, mas em 1834 entrou nos próprios nacionais e foi vendido.

O episódio foi rapidamente aproveitado como instrumento de propaganda contra Castela, servindo igualmente para reforçar a tese da protecção divina do reino de Portugal, associada à devoção pelo Santíssimo Sacramento. A capela integrava-se assim num conjunto de obras régias de forte carga ideológica, apresentando-se como um dos primeiros monumentos de celebração do sucesso da Restauração. O convento anexo foi edificado posteriormente, e entregue aos Carmelitas Descalços em 1661, embora as obras se tenham prolongado pelo menos até à primeira década do século seguinte.

Convento e Igreja do «Corpus Christi» [1968]
Antigo Largo dos Torneiros
Rua dos Fanqueiros nº 113-117,Rua de São Nicolau nº 2-16,  Rua dos Douradores nº 50-62
Destruído em 1755 pelo Terramoto e pelo consequente incêndio, sobreviveram parte do corpo da igreja e alguns espaços conventuais, que foram adaptados à estrutura arquitectónica e às ordens impostas para a reconstrução da baixa da cidade e implementado pelos arquitectos da Casa do Risco.
Armando Serôdio, in AML

Da campanha de obras inicial, concebida por Teodósio de Frias, conhecem-se algumas descrições. Segundo fontes coevas, o templo, de planta quadrada, erguia-se sobre um soco baixo, tendo torre sineira e fachada vazada por pórtico de arcada dupla dando acesso ao portal de feição clássica, enquadrado por duas janelas e encimado por frontão ornado com as armas reais e por um nicho. No interior destacavam-se os alçados marcados por grandes arcos redondos, rematados por cimalha e articulados com as trompas de apoio ao zimbório, as seis tribunas, uma de maiores dimensões, e ainda os mármores de revestimento.
Com o Terramoto de 1755 e o incêndio subsequente, o convento terá sofrido destruição quase total, ficando a igreja muito arruinada, embora possivelmente de pé. A sua reedificação no mesmo local não terá sido decidida de imediato, já que para aí esteve inicialmente prevista a vizinha Igreja de São Nicolau. Quando enfim tomou corpo, a reconstrução, a cargo do arquitecto Remígio Francisco de Abreu, integrou os edifícios na malha ordenada da Baixa Pombalina, e o novo convento, ocupando quase todo o quarteirão, foi parcialmente dividido em lojas e apartamentos para aluguer, destinadas a proporcionar rendimento aos frades.

Convento e Igreja do «Corpus Christi» [c. 1940]
Antigo Largo dos Torneiros
Rua dos Fanqueiros nº 113-117,Rua de São Nicolau nº 2-16,  Rua dos Douradores nº 50-62
Eduardo Portugal, in AML

A igreja oitocentista reproduzirá pelo menos os traços fundamentais do templo original, sendo mesmo possível que tenha incorporado parte da estrutura sobrevivente, suposição permitida pela análise da planta e da sua inserção urbanística, dos alçados internos, com cobertura em cúpula assente igualmente em quatro arcos com cimalha corrida, e de alguns revestimentos marmóreos de embutido largo, muito empregue na arquitectura portuguesa da primeira metade do século XVII. A planta centralizada (quadrado de cantos cortados), que constitui caso único na Baixa Pombalina, conserva o simbolismo de moimento, e até de martyrium, do edifício anterior, evocando o milagre da vitória régia sobre a morte, com uma conotação funerária que fora igualmente aproveitada aquando do sepultamento provisório de D. Luísa de Gusmão, em 1666. O espaço interior esteve dividido em sobrados, sendo hoje possível voltar a admirar a sua grande altura, bem como o esplendor dos mármores brancos, negros e rosa, iluminados pelas oito janelas da cobertura.
A actual frontaria é o resultado de uma série de alterações posteriores à extinção das ordens religiosas [1834] e à consequente venda e remodelação do templo e do convento para usos comerciais, nomeadamente o desaparecimento do portal de frontão curvo interrompido da igreja pombalina, de que resta um desenho do século XIX, substituído por três portas de verga recta no piso térreo e igual número de janelas de sacada no segundo andar. As janelas do terceiro andar mantiveram-se, embora com alterações, sendo ainda hoje encimadas pelo frontão contracurvado, único elemento da fachada a recordar a antiga função religiosa, apenas coadjuvado pelo zimbório octogonal que sobressai da regularidade dos telhados pombalinos.

Convento e Igreja do «Corpus Christi» [c. 1940]
Antigo Largo dos Torneiros
Rua dos Fanqueiros nº 113-117,Rua de São Nicolau nº 2-16,  Rua dos Douradores nº 50-62
A original igreja de planta circular com o zimbório octogonal encimado por um pináculo é
ainda visível actualmente, bem como o portal da entrada da igreja, hoje convertido em acesso
a um prédio típico da baixa.
Eduardo Portugal, in AML
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Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p.39, 1939.
SOROMENHO, Miguel, SANTOS, Maria Helena Ribeiro dos, O Convento de Corpus Christi: um caso de estudo, Monumentos, n.º 21, pp. 116-131, DGPC, 2004.

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