Sunday 7 April 2019

Circo Price

Do lado ocidental da actual Avenida da Liberdade — situado na esquina da antiga Travessa da Vacas (hoje «do Salitre») com a Rua do Salitre (antes «Calçada do») — erguia-se o antigo Circo Price [vd. mapa], fundado em 1860 pelo inglês Thomas Price e que teve grande aura como um dos divertimentos predilectos de Lisboa. Dele contaram histórias autores afamados. Aqui damos nota de alguns deles.

E o Circo Price  — interrogarás tu, Dilecto, que tanto tens ouvido falar dele? Ora eu te digo, em poucas palavras. 
 O Circo Price foi vizinho da velha Praça taurina [do Salitre], mas muito posterior. Assentava no eixo da Avenida [da Liberdade] de hoje, pouco mais ou menos onde está o monumento aos Mortos da Guerra.
Em parte do terreno da horta dos frades capuchos, e que êles em seu tempo traziam de renda, fêz erguer o inglês Tomás Price o seu Circo, inaugurado em 11 de Novembro de 1860, o que contribuiu para liquidar o Circo velho do Salitre. Deu espectáculos de «cavalinhos» [nome pelo qual o povo conhecia esta casa de espectáculos], de exposição de feras, e até deliciou o público com zarzuela, e da melhor de Espanha. Em 1875 o Circo Price foi hipotecado, e desapareceu, mas o simpático inglês não desanimou e instalou-se no abandonado Circo vizinho, o «do Salitre», que, assim, reviveu um tempo.
E em 1880 já não havia nada disto; teatros, praças, circos, sumiram-se.¹

Circo Price [ant. 1880]
Calçado do Salitre, esquina da  , foi demolido para abertura da Avenida da Liberdade em 1880

«Era mais amplo que o actual Colyseo dos Recreios, e a sua enorme cupula assentava sobre grossas vigas de madeira, que resistiram a todo o tempo e maus tratos que lhes deram. (I.P. 1885)
Desenho de Domingos Cazellas, gravura de Caetano Alberto

Era em 1867. Frente a frente, as Variedades [Theatro das] e o Circo Price alinhavam os seus bicos de gás festeiros, a que as vergastadas do noroeste impunham um tremelilhar inquieto. Quinta-feira — noite de cabriolas com sobrescrito à fina sociedade. Enchente certa no Circo. De cada lado do portal da entrada, um semicírculo compacto de gente se agitava, tendo por centro cada um seu postigo de bilheteiro, e ambos por igual colados, premidos sofregamente contra a parede verdoenga do barracão, e arredondando pela rua fora, numa irregularidade gritada e confusa, a toda a largura do macadame. Tudo queria bilhete. Havia chapeus tombados, ombros que penetravam á cunha, braços arpoando vigorosamente os alizares castanhos dos postigos, mãos retirando triunfantes, muito erguidas, com um papelinho azul ao vento.²

Circo Price [ant. 1880]
Calçado do Salitre, esquina da Travessa das Vacas, foi demolido para abertura da Avenida da Liberdade em 1880
Número de equilibrismo

«O espectaculo compunha-se quasi todo de trabalhos sobre cavallos, saltos de bandeiras, arcos e fitas, e intermedios comicos pelos tres clowns Whyttoine, Secchi e Alfano. O valor da companhia aquilatava-se pelo numero de cavallos que a mesma trazia. Era parte obrigada do espectador visitar as cavallariças no intervallo do espectaculo.». (I.P. 1885)
Desenho da época, reproduzido fotograficamente por José Artur Barcia

Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre e pasmada, apinhava-se até ás ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os requebros do palhaço [vd. N.B.], rebocado de caio e vermelhão, que tocava nos pésinhos duma voltigeuse e lambia os dedos, de olhos em alvo, num gosto de mel... Descansando na sela larga de xairel dourado, a criatura, magrinha e séria, com flores nas tranças, dava a volta devagar, ao passo dum cavalo branco, que mordia o freio, levado à mão por um estribeiro; e pela arena o palhaço lambão e néscio acompanhava-a, com as mãos ambas apertadas ao coração, numa suplica babosa, rebolando languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calça listrada de ouro, empurrava-o, num arremedo de ciúmes; e o palhaço caia, estatelado, com um estoiro de nádegas, entre os risos das crianças e os rantantans da charanga. O calor sufocava; e as fumaraças de charuto, subindo sem cessar, faziam uma neva onde tremiam as chamas largas do gás. Carlos, incomodado, abalou.
— Espera ao menos para ver a mulher dos crocodilos! gritou ainda o Taveira.
— Não posso, cheira mal, morro!³
     [...]
— Então de onde vem, de onde vem?
Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da pipa.
— A pipa tem muita graça! Muita graça!

[Leopoldina] Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma carteirinha, chaves, uma caixinha de pó-de-arroz; mas encontrou apenas um programa do Price.

Programa do Circo Price [1867]
Calçado do Salitre, esquina da Travesso das Vacas, foi demolido para
abertura da Avenida da Liberdade em 1880

Do circo do Price lembro-me muito bem — diz Matos Sequeira — , como da figura do Price, sentado de chapeu alto, no pequeno salão precedido do estreito corredor de entrada, distribuindo programas do alto do seu estrado.

Levantamento topográfico de Lisboa, extracto [1878]
Legenda: a
azul o Circo Price; a azul claro a antiga Travesso das Vacas (actual «do Salitre»; a vermelho, a Avenida da Liberdade; a verde, a Praça/Circo do Salitre e o Theatro das Variedades;
a laranja, a Rua do Salitre, antiga «Calçada do»

César Goullard, in A.M.L.

N.B. O palhaço a que Eça se refere em «Os Maias» e na «brincadeira da pipa» em «O Primo Basílo»(³,), era, com grande probabilidade, o famoso Whyttoine, um dos mais aclamados clowns do panorama artístico do séc. XIX, largamente elogiado n'A Illustração portugueza de 1885:
«No Circo Price existia porém uma individualidade unica, especial, sui generis, que todos conheciam, applaudiam, estimavam e respeitavam — o velho Whyttoine, esse clown que chegou até nossos dias como um symbolo de bondade, trabalho e honradez, e como uma mimosa recordação da nossa descuidada infancia.
Whyttoine era a nota alegre do Circo Price. Perante a sua veia comica abatiam-se humilhadas as mais austeras gravidades e sorumbaticos caracteres. A scena da pipa e o morto e o viro não tornaram a ter outro interprete que melhor as desempenhasse.»
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Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XIV, p. 34. 
² Abel Botelho. O Barão de Lavos, 1908.
³ QUEIROZ, Eça de, Os Maias,1888.
³ idem, O Primo Basílio, 1878.
MATOS SEQUEIRA, Gustavo de, Depois do terramoto: subsídios para a história dos bairros ocidentais de Lisboa, 1967.

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