Sunday 30 September 2018

Profissões de antanho: o vaga-lumes

O lisboeta conhecia-o por «caga-lumes». Eram funcionários da Câmara, usavam blusão largo cinzento e boné de pala.

Ao fim do dia, quando a luz começava a esmorecer, a azular as sombras pelas esquinas, vinha o vaga-lumes de comprida vara aos ombros, no extremo da qual havia uma chave de duas lâminas e um casulo de ferro com buracos a albergar e a proteger do vento uma pequena chama alimentada a petróleo.


Pelos bairros mais pobres e populares, onde ainda não chegara a electricidade, a iluminação pública era feita a gás, canalizado dos grandes gasómetros situados na Rua da Boa Vista, Avenida 24 de Julho e junto à Torre de Belém.
Ao principio da noite, carregando a sua pouca ferramenta, o vaga-lumes aproximava-se dos candeeiros, que felizmente, ainda ornamentavam as ruas da cidade e, com a chave, abria as torneiras. Por uma pequena janela de vidro, praticada na base, introduzia o casulo com a chama, acendendo de imediato a camisa rígida, feita de uma rede de fios de algodão, embebida em óxido de magnésio, a qual incandescia, atingindo rapidamente o rubro-branco e produzindo uma luz muito clara.

O vaga-lumes  [ca. 1900]
Praça do Comércio
 Fotógrafo não identificado, in AML

De madrugada, quando o Sol começava a dar uma leve claridade, o vaga-lumes vinha fechar o gás, tendo obrigação de limpar todos os aparelhos, para que os vidros estivessem sempre transparentes.
O vaga-lumes desapareceu das ruas de Lisboa, uma vez que toda a cidade deixou de utilizar a luz do gás, salvo algum beco escondido, em velho bairro, que o detenha testemunhar o passado!
Os artísticos candeeiros, sobretudo os de parede, ainda são objecto de grande interesse pela beleza e equilíbrio do desenho.

O vaga-lumes  [ca. 1900]
Fotografia anónima

A completar, diremos que o gás foi inaugurado em Lisboa em 1891 após muita resistência dos serviços camarários, que duvidavam, naquela época, que fosse possível fazer luz sem pavio — quando já existia a iluminação a gás nas várias cidades da Europa! A vontade do Governo de então prevaleceu contra os embargos que a Câmara inventava para que não continuassem as obras de escavações nas ruas da cidade. Isso é outra historia!

O vaga-lumes  [1814]
Costume of Portugal by Henry L'Evêque

Bibliografia
DINIS, Calderon, Tipos e factos da Lisboa do meu tempo: 1970-1974, 1986.

Friday 28 September 2018

Travessa das Parreiras

Em suma — diz Mestre Júlio de Castilho — : a Rua do Carvalho, a Rua do Loureiro, a Rua dos Jasmins, a Rua da Era, a Travessa da Era (ou Hera), a Travessa das Chagas Velhas, a Travessa da Laranjeira, ou das Laranjeiras, como dantes se chamou, a Rua das Parreiras, a Rua das Flores, e talvez a Praça das Flores, são risonhas amostras de um quadro que se perdeu, um grande quadro variegado, painel muito florido, a que talvez se apegassem, aqui, ali, nalgum canteiro, nalgum alegrete, nalgum caramanchão, memórias desconhecidas das lindas mãos de Brites ou de Helena de Andrada; e digo lindas, porque Miguel Leitão lá confessa, com ar malicioso, que havia então parentas suas bem formosas.

Travessa das Parreiras [1908]
Perspectiva tomada da Calçada de Santo António na
direcção sa Rua de Santa Marta
Machado & Souza,
in Lisboa de Antigamente

Como refere Castilho, este topónimo de “parreiras” inscreve-se numa antiga tradição popular de designar topónimos indo buscar a sua identidade às disposições dos terrenos ou do local, às circunstâncias naturais, à fauna ou à flora.
Este arruamento — que era uma antiga zona rural — tem início na Calçada de Santo António e finda na Rua de Santa Marta.

Travessa das Parreiras [1908]
Ao fundo a Rua de Santa Marta
Machado & Souza,
in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
CASTILHO, Júlio de, Lisboa Antiga, vol. I, p.28.
cm-lisboa.pt.

Wednesday 26 September 2018

Rua do Loureiro

Ora espreita, à direita —  diz Norberto de Araújo — , essa Rua do Loureiro, que desce em escadinhas, e, atravessando Guilherme Braga, se continua pelo Beco do Loureiro que vai morrer na Rua da Regueira; eis um enfiamento bizarro e sugestivo. Já agora tomemos por ela, e vejamos, ali no recanto, a fachada de um prédio, n.° 7, na qual se ostenta um escudo radiante ornamentado, sem definição, e que sei apenas que é original, único deste tipo em toda a Alfama.

Rua do Loureiro [1899]
Ao centro vê-se a fachada do prédio com o n.º 7 que ostenta o escudo 
(florão) referido pelo olisipógrafo Norberto de Araújo; perspectiva tirada da 
Rua das Escolas Gerais
Machado & Souza, in AML

Este arruamento, que vai da Rua Guilherme Braga à Rua das Escolas Gerais, já aparece referido nas descrições paroquiais anteriores ao Terramoto de 1755, na freguesia do Salvador. Após a remodelação paroquial de 1780 surge sucessivamente nas freguesias de S. Miguel, de Santo Estêvão e de novo, na do Salvador.

Rua do Loureiro [1900]
Ao centro vê-se a fachada do prédio com o n.º 7 que ostenta o escudo 
(florão) referido pelo olisipógrafo Norberto de Araújo; perspectiva tirada da 
Rua das Escolas Gerais
Leitão Bárcia, in AML
________________
Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. X, p. 82, 1939.
cm-lisbpa.pt

Sunday 23 September 2018

Theatro Phantastico (Teatro Fantástico)

Espreitamos na Rua do Jardim do Regedor, o sítio onde foi o Teatro Fantástico, com um átrio feito de estalagmites e estalactites, de pasta colorida, por onde passaram alguns artistas que estão hoje na primeira fila.¹


Um dos mais antigos animatógrafos de Lisboa e do país foi o popular Teatro Fantástico. Inaugurado em 1909, fez sensação devido à sua decoração cuidada e bastante arrojada para a época. O interior da sala tinha uma atmosfera diferente devido essencialmente à decoração do tecto que ostentava estalactites feitas de pasta de papel. Em conjunto com uma iluminação bem conseguida a realçar essa particularidade, o espectador quase que se podia sentir como estando dentro de uma gruta.

Theatro Phantastico |1912|
Rua do Jardim do Regedor, 4-8
Perspectiva tomada da Rua das Portas de Santo Antão
Em cartaz, a revista Hoje Anda à Roda, estreada em 1912.
Joshua Benoliel, in Lisboa de Antigamente

Em 1915 muda de donos e também de nome, passando a designar-se «Paradis». Um ano depois volta a mudar de empresa exploradora e desta vez passa a chamar-se «Salão Rubi». Em 1917 terminam as exibições cinematográficas e o local passa a ser utilizado como teatro recuperando o nome Fantástico. As constantes mudanças de administração devidas a má gestão provocam uma instabilidade que acabaria por ditar o seu encerramento definitivo em 1918.² 

Theatro Phantastico |1912|
Rua do Jardim do Regedor, 4-8
Cena da revista Hoje Anda à Roda estreada em 1912
Alberto Carlos Lima, in Lisboa de Antigamente

Bibliografia
¹ SEQUEIRA, Matos, Velhos teatros de Lisboa desaparecidos, 1952.
² RIBEIRO, M. Felix, Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa, 1896-1939, 1978.

Friday 21 September 2018

Palacete Ramires

No final do século XIX ainda o troço de arranque da que viria a ser a Avenida Fontes Pereira de Melo se designava de Rua do Abarracamento de Vale Pereiro. As terraplanagens nas ruas (depois avenidas) Fontes Pereira de Melo e António Augusto de Aguiar, iniciam-se cerca de 1897. Em 1900, a canalização de água para esta zona da Cidade, está praticamente concluída. A partir de 1902 começaram a circular os primeiros carros eléctricos — aqui descendo a avenida pela direita. (Refira-se que o sentido da circulação em Portugal passou a fazer-se pela direita em 1 de Junho de 1928).

Palacete Ramires [190-]
Avenida Fontes Pereira de Melo, 6-6-A; Rua Actor Tasso, 16-38
Paulo Guedes, in A.M.L.

Palacete mandado construir por volta de 1891 (Processo de Obra nº: 5903, 1891, CML) para o industrial Gabriel José Ramire — proprietário e gerente da Fábrica de tecidos de sedas Ramires & Ramires, conhecida por Fábrica das Amoreiras sita na Travessa das Bruxas — naquela que viria a ser a nova Avenida Fontes Pereira de Melo.
Perfilava-se a residência com duas fachadas, uma sobre a Rua Actor Tasso (antiga Tv. do Láza — ro Verde) e outra, a principal, projectando-se na nova avenida — gozava de vista para o Parque — , como se dizia na altura.
Demolido no final da década de 1960.

Palacete Ramires [191-]
Avenida Fontes Pereira de Melo, 6-6-A; Rua Actor Tasso, 16-38
Joshua Benoliel, in A.M.L.

Wednesday 19 September 2018

Rua da Senhora da Glória

Ora aqui temos uma curiosa artéria do sítio — diz Norberto de Araújo: a Rua de Nossa Senhora da Glória, cujo enfiamento é curiosíssimo, com a silhueta de S. Vicente ao fundo. Esta rua é do princípio do século passado [séc. XIX], mas a sua urbanização tem sido lenta. E vamos descendo.


Rua da Senhora da Glória N↔S  [1907]
Junto ao prédio (esq.) com o n.º 140, vista da Rua dos Sapadores
 Machado & Souza, in AML

Das várias quintas aforadas, no nosso lado esquerdo, norte, se foram erguendo prédios, alguns há poucos anos, e outros há poucos meses, como êste — repara —  cujo chão se integrava na Quinta do Amaral, na esquina das Travessas e Rua da Senhora da Glória, imponente, moderníssimo de forma, desafogado, verde-ervilha, do tipo dos 'decks' de navio [vd. 3ª foto]: data de 1938 e é propriedade de Luiz Ribeiro que o comprou ao construtor António da Silva.

Rua da Senhora da Glória, junto à Rua das Beatas antiga da Conceição  [1907]
Ao fundo à direita vê-se o prédio «verde-ervilha» na esquina com a Travessa da Senhora da Glória, referido por mestre Araújo; do lado esquerdo —onde se vê uma árvore debruçada sobre a rua — ergue-se a Ermida de Nossa Senhora da Glória
 Machado & Souza, in AML
Rua da Senhora da Glória esquina com a Travessa da Senhora da Glória [1907]
Prédio «verde-ervilha»referido por mestre Araújo«cujo chão se integrava na Quinta do Amaral»
 Machado & Souza, in AML

E aí tens, Dilecto, o contraste, a tal luta entre duas civilizações urbanistas: êsses prèdiozitos côr de rosa, metidos entre quintalórios, na Rua do Cardal, amachucados ante a grandeza do prédio verde-ervilha que estamos ainda a ver.
Estamos agora defronte da Ermida de Nossa Senhora da Glória.

Rua da Senhora da Glória N↔S  [1907]
Junto ao prédio (dir.) com o n.º 101, destacando-se, mais abaixo, o telhado 
da Ermida de Nossa Senhora da Glória
De joelhos, com a bengala ou a muleta no chão, vê-se um homem de mãos erguidas 
para o céu, perante o olhar curioso da vendedeira ambulante. 
Promessa ou devoção à Senhora da Glória?
 Machado & Souza, in AML

N.B. A Rua da Senhora da Glória foi fixada na memória da cidade em data que se desconhece mas seguramente, pelo menos data do século XIX já que nos registos de numeração predial, consta um mandado datado de 19 de Julho de 1893, onde este arruamento está designado por Rua de Nossa Senhora da Glória, à Graça.[cm-lisboa.pt]
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Bibliografia
Norberto de Araújo, «Peregrinações em Lisboa», vol. VIII, p. 26, 1939.

Sunday 16 September 2018

Ermida de Nossa Senhora da Glória (ao Cardal da Graça)

Havia dias em que, sem repousar, correndo pelas ruas, esbaforido, eu ia à missa das sete a Santana, e à missa das nove da Igreja de São José, e à missa do meio-dia na ermida da Oliveirinha — assim era o dia-adia de Teodorico Raposo – o protagonista e narrador de "A Relíquia" de Eça de Queiroz. 
Descansava um instante a uma esquina, de ripanço debaixo do braço, chupando à pressa o cigarro; depois voava ao Santíssimo exposto na paroquial de Santa Engrácia, à devoção do terço no convento de Santa Joana, à bênção do Sacramento na capela de Nossa Senhora, às Picoas, à novena das Chagas de Cristo, na sua igreja, com música. Tomava então a tipóia do Pingalho, e ainda visitava, ao acaso, de fugida, os Mártires e São Domingos, a igreja do convento do Desagravo e a Igreja da Visitação das Salésias, a capela de Monserrate, às Amoreiras e a Glória ao Cardal da Graça, as Flamengas e as Albertas, a Pena, o Rato, a Sé! 
[QUEIROZ, Eça de, A Relíquia, 1887]

Ermida de Nossa Senhora da Glória |c.1900|
Rua de Nossa Senhora da Glória (ao Cardal da Graça)
José A. Bárcia, in Lisboa de Antigamente

Estamos agora defronte da Ermida de Nossa Senhora da Glória — diz o ilustre Norberto de Araújo. É esta Ermida posterior ao Terramoto, pois foi construída em 1757 pela Irmandade daquele orago. Nela esteve, naquele ano, instalada provisoriamente a paroquial de Santa Maria Maior (Sé Patriarcal). Interiormente, a Ermida é pobre, sem capelas no corpo da Igreja, que apresenta apenas um interessante tecto, em arco de cesto, pintado a claro escuro. Nos topos tem apenas dois altares: o de N. Sr.ª das Dores e o de N. Sr.ª de Fátima.

Ermida de Nossa Senhora da Glória |1944|
Rua de Nossa Senhora da Glória (ao Cardal da Graça)
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente

A Capela-Mór [vd. 3ª foto] já tem que ver. Observa esses painéis laterais de azulejo, guarnecidos de florões policromos, de bons amarelos, e sobrepujados por legenda.
Nessas legendas-uma em cada lado da capela — se atesta, na da esquerda que em 1 de Novembro de 1755 descansou aqui um sacerdote que conduzia o Santíssimo, e o povo se prosternou ante a sagrada partícula, e na da direita que em 1 de Novembro de 1757 se transferiu para esta Ermida a Imagem de N. Sr.ª da Glória.

N.B. O painel representativo da Senhora da Glória era objecto de culto e de muita devoção da população local.

Ermida de Nossa Senhora da Glória, Capela-mor |c.1900|
O altar-mor está separado por um arco redondo e apresenta uma falsa abóbada de madeira
Rua de Nossa Senhora da Glória (ao Cardal da Graça)
José A. Bárcia, in Lisboa de Antigamente
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Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. VIII, p+. 26-27, 1938.

Saturday 15 September 2018

1.000.000 de visitas! Acaba de franquear a porta deste Tasco o milionésimo freguês

Cerca de 3 anos após o início desta aventura "blogo-literária", este pictórico boteco atingiu 1.000.000 de acessos conforme atesta o contador temporariamente trasladado para o topo  da página. Um milhão de estímulos que nos encorajam a continuar viagem nesta espécie de máquina do tempo.
Aos nossos dilectos leitores (e a um ou outro troll), aos que aqui vêm em procura de informação e inspiração para criarem outras publicações e aos que partilham, comentam, copiam ou descarregam conteúdos sobre a nossa amada Lisboa —  um milhão de obrigados.
Pel'A gerência do Tasco, DA

Largo do Rato e Rua Alexandre Herculano [1927-02-14]
Multidão acorre ao Tasco em busca das últimas publicações de Lisboa de Antigamente
(Agora mais a sério) Legenda no arquivo:«O povo vendo os destroços da revolução [Revolta de Fevereiro de 1927, vd. N.B.
Fotógrafo não identificado, in Arquivo do Jornal O Século

N.B. A Revolta de Fevereiro de 1927, por vezes também referida como Revolução de Fevereiro de 1927, foi uma rebelião militar que ocorreu entre 3 e 9 de Fevereiro de 1927, centrada no Porto, cidade onde estava instalado o centro de comando dos insurrectos e se travaram os principais recontros. A revolta, liderada pelo general Adalberto Gastão de Sousa Dias, terminou com a rendição e prisão dos revoltosos e saldou-se em cerca de 80 mortos e 360 feridos no Porto e mais de 70 mortos e 400 feridos em Lisboa. Foi a primeira tentativa consequente de derrube da Ditadura Militar que então se consolidava em Portugal na sequência do Golpe de 28 de Maio de 1926, ocorrido nove meses antes, iniciando um conjunto de movimentos insurreccionais que ficaram conhecidos pelo Reviralhismo. [Wikipedia]

Friday 14 September 2018

Rua do Crucifixo, 55

Velha rua quinhentista  — pouco mais ou menos no lugar onde  ficava o «Beco de Gaspar das Naus»  — também chamada Rua do Santo Espírito da Pedreira devido à proximidade do convento do mesmo nome, hoje Armazéns do Chiado e antes Palácio Bacelinhos.

Rua do Crucifixo, 55 [1929]
Fachada do Stand de automóveis C. Santos, representante da marca 
Studebaker, inscrita na frontaria
Fotógrafo não identificado, in Arquivo do Jornal O Século

Wednesday 12 September 2018

Chiado: antigo Convento do Espírito Santo da Pedreira

Na confluência das Ruas do Carmo e Nova do Almada — diz Norberto de Araújo — e em prolongamento para qualquer dos lados  — , com a entrada principal no tôpo do fundo da Rua Garrett, levanta-se o edifício dos Grandes Armazéns do Chiado [1894], que dominam o local.

Alçado do Convento e Igreja do Espírito Santo na calçada do Carmo, topo da rua direita das portas de Santa Catarina (hoje Rua Garrett), e Rua Nova de Almada, da travessa de Santa Justa, até à travessa (hoje Rua) de S. Nicolau

Assentava aqui, antes do Terramoto, o amplo Convento do Espírito Santo da Pedreira, dos frades da Congregação do Oratório de S. Felipe Nery, fundado no final do século XIII, e reedificado entre 1514 e 1516. O Terramoto destruiu o Convento e Igreja, que foram reedificados, sem a antiga grandeza. Em 1835, depois da extinção das Ordens, os religiosos, que foram tolerados por algum tempo, acabaram por ser expulsos da sua casa. O edifício foi então comprado por Manuel José de Oliveira, 1.° Barão de Barcelinhos (1841), individuo que, pela sua fortuna, granjeara o apodo de «Manuel dos Contos»; pelo segundo casamento da viúva o prédio e o título passaram para Manuel Correia da Silva Araújo, e, morrendo êste, novamente a viúva casou com o Dr. Carlos Ramiro Coutinho, que foi 3.º Barão de Barcelinhos e 3.º Conde de Ouguella. (A Baronesa, de apelido Soares de Oliveira, ainda sobreviveu ao terceiro marido). O título de visconde de Barcelinhos continuou-se do primogénito do Barão, e depois perdeu-se.

Convento do Espírito Santo da Pedreira
Legenda da gravura: Perspectiva conjectural do território da Pedreira nos finais do século XIII. Vê-se no primeiro plano, ao centro, o Convento do Espírito Santo da Pedreira (mais tarde, Palácio dos Barcelinhos / Grandes Armazéns do Chiado); em frente, em direcção ao Poente, a estrada de Santos (a Rua Garrett de hoje); à esquerda o Convento de São Francisco e os Mártires; mais ao longe o paço que foi dos Condes de Ourém; à direita o Estudo Geral (liceu); ao fundo, à esquerda o Convento da Trindade
Desenho: Alberto de Sousa, 1880-1961, pintor, in AML

No local existiu desde 1279, uma antiga Casa chamada de Espírito Santo da Pedreira, irmandade de nobres e mercadores ricos de origem judaica, que promoviam a associação e a entreajuda financeira. O culto do Espírito Santo vem da rainha Isabel, mulher de D. Dinis, no primeiro templo da Pedreira. Pedreira, porque no local se encontrava a grande rocha que caía sobre o vale a que hoje se chama Baixa, e por onde o rio não entrava. A casa, o hospital da irmandade e o respectivo espaço conventual situavam-se na confluência da que é hoje a Rua Garrett com a Rua Nova do Almada, e sofreram durante o século XVII várias obras de reconstrução. 

Grandes Armazéns do Chiado [1910]
Rua do Carmo, Rua Nova do Almada (perspectiva tirada da Rua Garrett)
Antigo  Palácio Barcelinhos e antes  Convento do Espírito Santo da Pedreira
Joshua Benoliel, in AML

Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p. 89, 1939.
VALDEMAR, António, Chiado O Peso da Memória, p. 104 , 1989.

COSTA, Mário, O Chiado pitoresco e elegante, p. 22-130, 1987.

Sunday 9 September 2018

Pátio de D. Fradique e Palácio Belmonte

Um recanto aberto, impregnado de melancolia, é este do Pátio de D. Fradique. Nado e criado à sombra do Castelo, passagem do Chão da Feira para o Menino Deus, este Pátio tem qualquer cousa de original na Lisboa do pitoresco urbano. De seu título ele evoca um D. Fradique Manuel, que teve aqui casa, e da qual advém o Palácio dos Condes de Belmonte, senhores no sítio, cujo pórtico brasonado de Figueiredos e Cabrais, se abre numa lateral do primeiro compartimento [vd. 2ª foto].¹

 

Pátio de D. Fradique [ant. 1938]
Portal de acesso ao pátio de D. Fradique na Travessia do Funil, 12; [Rua do Chão da Feira]
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente

Uma curiosidade lisboeta é este Pátio de D. Fradique. Ele constitui o prolongamento natural do Chão da Feira, que acabamos de ver com a sua Porta de S. Jorge e os seus dois cubelos circulares decorativos, e do qual se passa ao Contador Mor através de três serventias curtas e estreitas: as travessas de S. Bartolomeu, do Chão da Feira, e do Funil, está já contígua ao Pátio. [...]
Contém-se o "sítio" numa área pequena que abre com um portal simples, aqui no topo do Chão da Feira, e fecha com outro na Rua dos Cegos; este recinto logo da entrada é que constitui propriamente o Pátio, pois que o recinto mais largo, passado o arco ou passadiço, bem pode chamar-se um terreiro, como dantes se chamou "Hortas de D. Fradique".

Palácio Belmonte no pátio de D. Fradique «de Cima» [1907]
Portal nobre do solar dos antigos senhores da Ota e de Belmonte,  janela central da 
fachada sul encimada pelas armas dos Figueiredos  — cinco folhas de figueira, em aspa,
em campo rodeado da legenda «Pro Deo et Pro Patria. P.N.A.M»
Travessa do Funil, 12; à direita
observa-se o passadiço, de acesso ao terreiro ou Pátio
de D. Fradique «de Baixo»
Machado & Souza, in Lisboa de Antigamente

Este recinto, no seu todo, constitui serventia pública de passagem, com portas sempre escancaradas, embora seja de propriedade particular.  
Quem deu nome ao Pátio? Supôs-se, com certa verosimilhança, que fosse um D. Fradique de Toledo, comandante general das tropas de Filipe IV, de Espanha, e comandante geral de uma esquadra saída de Lisboa, e que, em 1625, tomou a cidade da Baía aos holandeses.

Pátio de D. Fradique [1907]
A antiga "Porta de D. Fradique" é hoje um passadiço abobadado (com 22 metros 

de comprimento por 3 e meio de largura) que liga os dois pátios:
o Pátio «de Cima» (Palácio Belmonte) e o Pátio «de Baixo» ([Pátio de D. Fradique).
Pode ver-se no topo do passadiço, de lado a lado, um oratório/capela
dedicado a Nosso Senhor do Livramento
, ali colocado em 1878 e por onde se
chegava pelas duas escadas laterais que se vêem na foto.
Machado & Souza, in Lisboa de Antigamente

Este D. Fradique, Marquês de Valdueza, tinha um irmão, D. Fernando, homem de ruins fígados, que foi, aqui no Castelo, comandante dos presídios castelhanos, os quais situados na Praça Nova deitavam sobre a área do actual Pátio; D. Fradique talvez aqui tivesse morado, e tem-se escrito que ele próprio foi comandante dos presídios.  
Parece, porém, incontroverso que o D. Fradique, que deu nome ao local, tivesse sido D. Fradique Manuel, em 1518 moço fidalgo do Rei Venturoso, pois é certo que antes do domínio espanhol em Portugal já a este Palácio, «senhor» do Pátio, andava ligado o nome de «Fradique».²

Pátio de Dom Fradique «se Baixo» [c. 1940]
A fachada do Palácio Belmonte virada para o rio e para o Pátio d«e Baixo», evidencia as sobreposições e acrescentamentos a que o edifício foi submetido ao longo dos séculos, destacando-se o amplo terraço, sobre uma casa térrea do Pátio de D. Fradique «de Baixo», guarnecido de uma fina balaustrada, ao centro da qual blasona a pedra de armas dos Figueiredos e Cabrais

 O caminho à esquerda conduz ao portal na Rua dos Cegos
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente

Com efeito no meado do século XV, um corregedor de Lisboa, Brás Afonso Correia, possuía neste sitio uns terrenos e casas que comprara (1449) a um Aires da Silva, e meio século depois (1508) adquiriu à Câmara mais um pedaço de chão e quintal. Esta propriedade de Brás Correia, que foi instituída em cabeça de vinculo pelo mesmo Brás em 1520, situava-se no que veio a ser depois o Pátio de D. Fradique «de Cima», que é aquele onde se rasga o portal do palácio.
Foi no final ainda do século XVI o no começo do século XVII que um descendente do corregedor do Lisboa (Rui de Figueiredo?) teria dado às suas casas quinhentistas, encostadas ao muro da Alcáçova, a forma apalaçada que em parte ainda hoje ostenta, no Pátio «de Cima». Em 1684 um descendente do fundador da Casa, Pedro de Figueiredo Alarcão, comprou umas casas e hortas, contíguas ao seu palácio pelo Nascente (Pátio de Baixo), ao 4.º Conde de Atalaia, D. Luís Manuel de Távora, quarto neto de um D. Fradique Manuel, descendente em linha directa, por bastardia, de um D. João Manuel, bispo de Ceuta e capelão mar de D. Afonso V, e filho natural do Rei D. Duarte.

Pátio de D. Fradique «de Baixo» [1968]
 À esquerda vê se parte final da fachada sul do Palácio Belmonte; o carreiro à direita conduz ao portal na Rua dos Cegos [vd. foto seguinte]
Armando Serôdio, in Lisboa de Antigamente

Fora aquele D. Fradique o transmissor de seu nome ao Pátio «de Baixo», denominação também atribuída a uma porta da Cerca Moura, situada onde existe hoje o corredor abobadado que faz ligação com os dois pátios [vd. 3ª foto], ou, melhor com os dois recintos do Pátio de D. Fradique, e ainda às «Hortas de D. Fradique». Desapareceram pois os Manuéis (Atalaias) desta sitio, ficando toda a propriedade unida no vinculo dos Figueiredos (1684), no Pátio de D. Fradique. O Palácio sofreu pelo Terramoto (era então de Rodrigo António de Figueiredo Alarcão) bastantes estragos, cujas obras de restauro o devem tem em parte desfigurado. Andou depois, em vários períodos, arrendado totalmente, quer na sua parte nobre quer suas dependências modestas.
O seu maior interesse histórico-arqueológico reside no facto de nele estarem integrados, e com nitidez, elementos de muros da Alcaçova e das torres e muralhas da Cerca Moura.³

Pátio de D. Fradique «de Baixo» [1961]
Portal na Rua dos Cegos, 44
 Ao fundo vê-se o Palácio Belmonte e passadiço abobadado que liga os dois pátios
Arnaldo Madureira, in Lisboa de Antigamente

No interior do Palácio Belmonte cumpre salientar as salas temáticas, os tectos apainelados ornamentados e o património azulejar. Classificado como Imóvel de Interesse Público é, actualmente, uma unidade hoteleira (Palácio Belmonte, no Pátio «de Cima» [vd. 1ª foto]. O Pátio de de D. Fradique «de Baixo» é propriedade da edilidade e encontra-se em ruínas (e ao abandono).
____________________________________________
Bibliografia
¹ ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, Vol. III, p. 47-48, 1938.
² idem, Legendas de Lisboa, p. 186, 1943.
³
idem, Inventário de Lisboa: Monumentos histórico, pp. 39-41, 1947. 
monumentos. pt; igespar.pt.

Friday 7 September 2018

Rua Augusta, 161: «Casa Africana»

A Casa Africana — recorda- nos mestre Araújo — , do lado poente da Rua [Augusta] esquina da Rua da Vitória — celebrizada pelo «preto» que transporta os pacotes, tradição — mascotte que ainda se mantém — é dos estabelecimentos comerciais de renome na Baixa.

Rua Augusta, 161 [c. 1934]
«Casa Africana»
Eduardo Portugal,in Lisboa de Antigamente

A Casa Africana foi fundada em 1856 na loja do prédio quási fronteiro, onde está o Hotel das Duas Nações [...] Em 1909 transferiu-se a Casa Africana para êste prédio, [...] ocupando de começo apenas a loja, mas alargando e elevando sucessivamente as suas instalações, hoje com quatro andares.
[ARAÚJO, Norberto de, Peregrinações em Lisboa, vol. XII, p. 52, 1939]

Rua Augusta, 161 [1940]
 Calçada portuguesa, o «Preto da Casa Africana»
Eduardo Portugal, in Lisboa de Antigamente
Anúncio da Casa Africana [1941]
Frase de marca «O Preto da Casa Africana» era 

sinónimo de alguém muito carregado de embrulhos.




Wednesday 5 September 2018

Grande Hotel das Duas Nações

Aí temos à esquina da Rua da Vitória o Hotel das Duas Nações — diz Norberto de Araújo — , um dos raros hotéis desta nossa área  — e tantos houve!
Êste Hotel das Duas Nações, com entrada pela Rua da Vitória, 41, leva aproximadamente sessenta e cinco anos, pois já existia em 1875; foi fundado neste prédio por Manuel (?) Certã. alentejano, casado com uma senhora espanhola, e daí a designação de «Duas Nações.

Grande Hotel «Duas Nações» [1912]
Rua da Vitória, 41 - 1º

Rua Augusta; Casa Comercial Ribeiro e Silva
Joshua Benoliel, in AML

À saída da Estação do Rossio — conta-nos Calderon Dinís — , por volta de 1900, os corretores dos hotéis eram uns sujeitos fardados exibindo nos quépis os títulos dos vários hotéis a que pertenciam.
À medida que os passageiros iam saindo das carruagens eram assaltados por esses homens a apregoar os nomes dos hotéis ou pensões, numa vozearia que se estendia a toda a gare. — Hotel Aliança! Hotel Borges! Suiço Hotel! Francfort Hotel! Hotel das duas Nações! Hotel Central! Pensão do Rossio! etc. Para quem vinha de longe e ignorasse Lisboa, eles, de imediato, tiravam as pessoas de dificuldades, oferecendo os seus préstimos e conduzindo as malas portáteis dos recém-chegados.
Tal serviço acabou com o desenvolvimento do turismo, pois, raro será o viajante que, não conhecendo o ambiente do destino, não contrate com uma agência de viagens que, sem mais preocupações para ele, se encarrega de todos os pormenores, desde o bilhete da passagem à instalação tranquila no local do destino.

Grande Hotel «Duas Nações» [1911]
Rua da Vitória, 41 - 1º, esquina com a Rua Augusta
Trabalhos de montagem do abrigo em ferro e vidro na fachada da

Casa Comercial Ribeiro e Silva virada à  Rua Augusta 
Alberto Carlos Lima, in AML

Bibliografia
ARAÚJO, Norberto de, «Peregrinações em Lisboa», vol. XII, p. 52, 1939.
DINIS, Calderon , Tipos e Factos da Lisboa do meu tempo (1900-1974), p. 42, 1986.

Sunday 2 September 2018

Grande Café d'Itália

A Rua Primeiro de Dezembro  — que já se chamou Rua do Príncipe — foi, desde o final do século XVIII, morada de muitos cafés. Entre os mais famosos e recentes —  diz Marina T. Dias — , do lado ocidental, estavam o pequeno Café Alvarez, o Grande Café Nacional e o seu "rival" Grande Café d'itália.


Por volta de 1925 eram os dois últimos centros políticos muito animados, reunindo tertúlias também rivais entre si e avessas a qualquer contacto com o território do inimigo. No Nacional pontilhavam os jesuíticos "bonzos", partidários de António Maria da Silva. No Itália reuniam os "canhotos" (alusão à extrema-esquerda), adeptos de José Domingues dos Santos. O terreno neutro era, no final da rua e logo a seguir ao Restaurante Leão d'Ouro, o Café Leão "Triste", mais tarde rebaptizado Restauração. Após décadas de mudanças, podemos ver o supermercado Celeiro no antigo Grande Café d'Itália, a sua secção de produtos dietéticos no velho Nacional e uma perfumaria, desde 1991, no local onde esteve o Alvarez (inicialmente conhecido por Ortiz e famoso no jogo de bilhar por apostas). 

Grande Café d'itália |1931|
Gaveto da Calçada do Carmo com a Rua Primeiro de Dezembro
Fotógrafo não identificado, in Lisboa de Antigamente

Quanto ao Leão que o público chamava "Triste", alberga agora a herança e o nome do contíguo Restaurante Leão d'Ouro, desde que, em 1998, este se transformou em churrasqueira. Pela banda leste da rua tiveram entrada todos os cafés cujas portas principais davam para o Rossio: Chave d'Ouro, Brasileira do Rossio, Portugal e Gelo. Existiu ainda, no gaveto entre os dois quarteirões, o primeiro de dois cafés lisboetas com o nome Aviz.
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Bibliografia
DIAS, Marina Tavares, Os Cafés de Lisboa, p. 106, 1999.
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